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Sonho interrompido na Nicarágua: conheça a história de Raynéia

Raynéia Gabrielle havia conquistado há poucos meses o sonho de infância de se tornar médica e foi morta a tiros quando voltava de um plantão no hospital

Publicado em: 25/07/2018 07:51 | Atualizado em: 25/07/2018 08:11

Foto: Arquivo Pessoal
“Ontem foi o pior dia da minha vida. Não consegui dormir. Era tiro, bomba, grito. Uma sequência. Tiro, bomba, grito. Eu tentava dormir, não sabia o que fazer. Tomei calmante natural para ver se eu conseguia me acalmar e nada.” Era 14 de julho quando a residente de medicina pernambucana Raynéia Gabrielle Lima, 30 anos, enviou a um amigo um áudio detalhando mais uma noite de conflitos em Manágua, na Nicarágua. Da casa onde vivia, a guerra travada entre policiais e estudantes parecia muito perto. Por algumas vezes, Raynéia relatou o medo aos familiares. Segunda-feira à noite, ela se transformou em uma vítima do confronto. 

Raynéia voltava para casa depois de mais um dia de plantão como residente de medicina no Hospital Carlos Roberto Huembes da Polícia Nacional do país. Estava em seu carro, o namorado vinha atrás em outro, quando foi alvejada. “Ela foi ferida no peito e afetou o coração, o diafragma e parte do fígado”, explicou ao jornal El Nuevo Diario o reitor da Universidade Americana (UAM), Ernesto Medina. Segundo ele, os disparos foram realizados por um grupo de paramilitares pró-governamentais.

O informe oficial da Polícia Nacional, entretanto, diz que “um guarda da vigilância privada, em circunstâncias ainda não determinadas, realizou disparos de arma de fogo, um dos quais a atingiu, provocando feridas”. Raynéia ainda chegou a ser socorrida, mas morreu no hospital. Moradores do bairro onde ocorreu o crime disseram ter ouvido duas rajadas de tiros.

Há cinco anos na Nicarágua, Raynéia foi a terceira estrangeira morta nos confrontos que ocorrem no país desde abril. Ela havia se mudado do Brasil para realizar o sonho de infância de ser médica. 
Quando o telefone tocou ontem, às 7h30, o coração da enfermeira aposentada Maria José da Costa, 55 anos, parecia avisar. Alguma coisa tinha acontecido com sua filha única. “Me deu aquele aperto. Por que fizeram isso com a minha filha? Ela vivia de casa para o hospital. Não se envolvia em nenhum protesto. Não importa o país, pode ser até no fim do mundo, mas eu quero justiça”, disse ela ao Diario, entre lágrimas.

Raynéia havia terminado a faculdade em dezembro. Estava na residência e pretendia voltar ao Brasil em março de 2019. Ela tentou vestibular no Recife duas vezes, mas ficou no remanejamento. Como os ex-sogros moravam na Nicarágua, decidiu cursar medicina por lá. “Desde os cinco anos, ela dizia que queria ser doutora. Sempre acompanhava meus plantões. Era o sonho dela tirar a dor do próximo. E ele foi interrompido.” 

A última vez em que esteve em Pernambuco foi no fim de 2014. “Ela contava que a Nicarágua estava um caos, que era melhor estar no hospital do que em casa. Eu dizia para ela ter cuidado”, comentou Maria José. “É uma dor muito grande, pois é uma morte que não se justifica. Estamos sem chão, perplexos”, disse o tatuador Iapona Pedroza, 46, amigo e padrinho de casamento de Raynéia.

Em nota, o Ministério das Relações Exteriores afirmou que o governo brasileiro recebeu com profunda indignação a morte. O órgão condenou o caso e disse que está buscando esclarecimentos junto ao governo nicaraguense. “O governo brasileiro torna a condenar o aprofundamento da repressão, o uso desproporcional e letal da força e o emprego de grupos paramilitares em operações coordenadas pelas equipes de segurança”.

O Itamaraty chamou, para consultas, o embaixador brasileiro na Nicarágua, Luís Cláudio Villafañe Gomes Santos. A embaixadora da Nicarágua no Brasil, Lorena Del Carmen, também foi convocada para prestar esclarecimentos. 

A Nicarágua enfrenta uma onda de protestos desde 18 de abril, em função da reforma da previdência anunciada pelo presidente Daniel Ortega. Cerca de 360 pessoas já foram mortas, a maioria civis. (Colaborou Uriel Velásquez, El Nuevo Diario - Nicarágua)
 
Entrevista  Maria José da Costa // mãe de Raynéia
 
Chorando muito ao telefone, a mãe de Raynéia, a enfermeira aposentada Maria José da Costa, 55 anos, conversou com o Diario. Segundo ela, a filha tinha se mudado para a Nicarágua em 2013, depois de tentar medicina duas vezes em faculdades públicas de Pernambuco. Medicina era o grande sonho dela, que estava terminando a residência e voltaria para o Brasil no começo do próximo ano. 
Raynéia, segundo a mãe, passou dificuldades para terminar o curso e chegou a vender brigadeiro para custear a vida na Nicarágua, para a qual também recebia ajuda financeira dos ex-sogros. 
A última vez que Maria José e Raynéia se falaram foi na manhã de segunda-feira (23), quando a estudante afirmou que estava de plantão e que, ao chegar em casa, à noite, ligaria para a mãe.
 
Como vocês ficaram sabendo do ocorrido?
Hoje (terça-feira) pela manhã, por volta das 7h30, meu ex-sogro me ligou. Neste momento, deu um aperto no meu coração. É difícil ele me ligar e quando vi a chamada imaginei que houvesse acontecido algo com a minha filha. Foi quando ele disse que ela tinha levado vários tiros e que não resistiu. Até agora, não sei mais de nada. Ainda não recebi ligação da embaixada.

Como era a rotina dela na Nicarágua?
Era de casa para o hospital. Ela tinha terminado a faculdade em dezembro e estava agora apenas na residência. Queria muito voltar ao Brasil. Tinha ido para lá porque, na época, o ex-sogro era engenheiro da Odebrecht. Assassinaram a minha filha sem motivo algum. Ela nunca foi de fazer manifestação, não era de acordo. Por que fizeram isso com ela? Quero justiça.

Ela já havia chegado a comentar dos protestos que estavam acontecendo na Nicarágua?
Já faz uns seis ou sete meses que ela comentou desses protestos. Disse que o país estava em conflito, que estava um caos. A primeira vez, ela contou: "já faz 10 anos que o governo está no poder e ninguém quer ele, mãe. Chega policial ferido, gente ferida, o tempo todo no hospital". Eu dizia para ela ter cuidado ao sair de casa e voltar, para não ir sozinha. Ela tinha medo, dizia que era mais seguro ficar no hospital do que em casa. Ontem, disse de novo para ela ter cuidado. Mas na volta do plantão aconteceu isso. 
 
EUA denunciam a violência no país de Daniel Ortega
 
O vice-presidente dos Estados Unidos, Mike Pence, denunciou na terça-feira (24) a violência “patrocinada pelo Estado” na Nicarágua e pediu ao presidente, Daniel Ortega, a realização de eleições antecipadas para superar a crise no país, sacudido desde abril por protestos que pedem sua saída. “A violência patrocinada pelo Estado da Nicarágua é inegável. A propaganda de Ortega não engana ninguém e não muda nada. Mais de 360 mortos pelas mãos do regime. Os Estados Unidos pedem ao governo de Ortega que ponha fim à violência AGORA e celebre eleições antecipadas: o mundo está de olho!”, escreveu Pence em sua conta no Twitter.

O tuíte de Pence se refere à entrevista de Ortega, realizada pela emissora americana Fox News e transmitida na noite de segunda-feira nos Estados Unidos. No trecho da entrevista retuitado por Pence, Ortega rejeita as acusações de que seu governo controla grupos pró-governamentais, que foram vistos agindo em acordo com a Polícia. “Estes são grupos que obedecem a organizações políticas”, disse Ortega, segundo a tradução para o espanhol da versão em inglês de suas declarações ao programa “Special Report”, do jornalista Bret Baier.

“Alguns, inclusive, elegeram deputados para a Assembleia Nacional. São membros do Partido Liberal. Outros não participaram das eleições, se negaram a fazê-lo. E estiveram organizando estes grupos paramilitares por algum tempo e se aproveitaram de cada pequena situação para lançar ataques”, acrescentou Ortega. “Nenhuma das manifestações pacíficas” foi atacada, assegurou o presidente.

Durante a entrevista, Ortega acusou grupos políticos nicaraguenses de encabeçar milícias antigovernamentais, financiadas por narcotraficantes e agências dos Estados Unidos. Segundo disse, estas milícias mataram dezenas de policiais durante as manifestações, que explodiram em 18 de abril contra uma reforma da Previdência proposta pelo governo, mas que derivaram em um amplo movimento que exige a renúncia de Ortega e de sua esposa e vice-presidente, Rosario Murillo. (AFP)  
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