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AVANÇO A vitrine norte-coreana Kim Jong-un transforma a capital Pyongyang para que ela sirva de cartão de visitas de seu regime. A cidade recebe a maior parte dos investimentos e não mostra sinais de desigualdade social

Por: Renato Alves -

Por: Correio Braziliense

Publicado em: 25/09/2017 18:02 Atualizado em: 25/09/2017 18:07

Pyongyang — Carros novos, edifícios altos, centros de estudos com milhares de computadores, um exclusivo clube de hípica, lojas com produtos encontrados em um típico país capitalista. Kim Jong-un transformou Pyongyang em vitrine do regime. Direciona a maior parte dos investimentos não destinados ao seu programa nuclear à capital da Coreia do Norte, onde, ao menos oficialmente, todos têm acesso a serviços básicos da melhor qualidade, além de amplas e completas instalações para saúde, educação e entretenimento.

Chama ainda mais a atenção em Pyongyang a ausência de qualquer sinal de desigualdade social ou dos mais simplórios problemas de saúde entre os seus 2,8 milhões de habitantes. Em meus 10 dias na cidade, não vi um mendigo na rua, tampouco alguém descalço ou com roupas velhas. Também não avistei um deficiente físico, cadeirante, nem alguém de muletas. Nem sequer uma pessoa com gesso ou faixa. Nem mesmo um pequeno curativo ou mancando, sentindo dor. Como se os moradores da capital não adoecessem, sofressem acidente, agressão ou os desgastes naturais da idade. Ninguém soube me explicar tal fenômeno.

Pyongyang abriga só a elite do país. As pessoas consideradas mais fiéis ao governo. A capital exibe um bom número de táxis e outros veículos e vive um pequeno boom na construção civil. As guardas de trânsito, que ficaram famosas por orientarem o tráfego por horas em ruas vazias, têm tido mais trabalho. Mas nada que justifique a presença delas em qualquer cruzamento da cidade onde há semáforo. Não há engarrafamento em Pyongyang. Ainda é possível ver avenidas sem um veículo por minutos, de dia. Às 21h, tudo fecha, Quase todas as luzes se apagam. Nas ruas, só se veem as fotos e estátuas do líderes iluminadas.

Guardas de trânsito em cruzamento de Pyongyang
Guardas de trânsito em cruzamento de Pyongyang

Os norte-coreanos não podem ter um carro próprio. É lei. Mas as elites sociais, formada basicamente pelos integrantes dos postos mais altos do Partido Comunista, andam em táxis novos e sempre limpos ou em sedãs chineses e Pyeonhwa, de fabricação local. Uma minoria mais poderosa e abonada desfila por Pyongyang em atuais modelos da BMW e da Mercedes Benz, que contrastam com as Mercedes azuis dos anos 1960 a 1980, destinados a transporte de convidados, e com velhos bondes do transporte público. Volkswagen Polos da cor branca, novos, são os carros oficiais mais usados por membros do partido em serviço.

Celulares e cachorros

O acesso à saúde e à educação continuam sendo gratuitos, assim como o consumo de energia elétrica e gás. Mas não há mais as cadernetas para controle de ração para cada família. Elas deram lugar a cédulas e a cartões de crédito, aceitos só na Coreia do Norte. A maioria dos moradores de Pyongyang recebe um salário estatal — cerca de 5 mil wons em média, o equivalente a US$ 50 no câmbio oficial. Eles pagam muito menos pelos mesmos produtos que os estrangeiros, proibidos de frequentar estabelecimentos destinados só aos locais.

A classe média pode, se tiver dinheiro suficiente, consumir produtos estrangeiros, tomar um café ou jantar e almoçar em restaurantes. O celular chegou ao país em 2008. Mas seu uso é limitado. Não há como fazer ligações internacionais, nem para estrangeiros morando no país. Os norte-coreanos tiram fotos com seus aparelhos e trocam arquivos MP3 entre si. Mas não há selfie. Portanto, não há paus de selfie. Os norte-coreanos também leem livros nacionais e o jornal do Partido dos Trabalhadores, Rodong Sinmun, nos celulares.

Nos bairros mais novos, constata-se um novo fenômeno norte-coreano: a criação de animal doméstico. Vi duas senhoras passeando com um seus cachorros em meus 10 dias na Coreia do Norte. Os animais eram admirados por crianças e adultos como se tivessem acabado de sair de uma selva. Meu guia confirmou que aquilo era muito recente no país e não soube (ou não quis) informar como conseguir e quanto custava um. Não vi um cachorro sem dono em toda Pyongyang. Nem gato.

Elegância nas ruas

Além dos celulares e dos pets, os norte-coreanos de Pyongyang exibem uma aparência muito diferente daquela de duas décadas atrás, de pessoas magras com roupas de aparência pobre e antiga. Homens andam elegantes, com sapatos sempre lustrados. Há os que exibem uma barriga protuberante. Mulheres acima dos 30 anos usam sapatos de salto, vestidos e acessórios.
Os moradores não param de destacar as virtudes de Pyongyang. Os guias e intérpretes escalados para acompanhar os estrangeiros nas raras excursões turísticas fazem de tudo para impressioná-los. Chamam a atenção até para itens comuns no exterior, como a captação de energia solar ou um elevador. “Moderno” é o adjetivo mais ouvido pelos visitantes. “Edifício moderno”, “zoológico moderno”, “veículos modernos”.
“Aquele prédio é o mais alto país. Tem 70 andares, foi feito em 70 dias. Um andar por dia”, ressaltou o meu intérprete, que também fazia as vezes de guia. Mas há áreas menos glamourosas na cidade. Lugares onde eu não podia descer, andar. O motorista que sempre me guiava, ao lado do meu guia e do meu intérprete, demonstrava saber que aquilo não deveria ser mostrado. Ele diminuía a velocidade  do carro nas ruas mais “modernas” e  acelerava sempre nas menos agradáveis, para dificultar a captação de imagens.

Nenhum edifício residencial levou mais de nove meses para ficar pronto em Pyongyang, segundo as informações oficiais. Complexos de lazer e estudo não passaram de dois anos. Tudo, segundo os mesmos, feito com material e tecnologia nacional, no mais curto espaço de tempo que se possa imaginar e sob a supervisão do “marechal” Kim Jong-un. A ele são atribuídos os maiores conhecimentos das mais diversas áreas. Um especialista em tudo.
Desde que assumiu o país, em dezembro de 2011, Kim Jong-un inaugurou o complexo de torres residenciais da rua Changjon, o Teatro do Povo, o maior hospital pediátrico da cidade e o novo edifício do museu dedicado à Guerra da Coreia (1950-1953). Conheci todos, sempre acompanhado de guia local que ressalta a participação direta do “líder” nos mais simples itens da obra e o tempo recorde de conclusão da empreitada. Ele também concluiu o clube de equitação de Mirim em 2013, instalação vetada ao norte-coreano comum, pois as entradas equivalem a quatro vezes o salário médio mensal.
No hospital pediátrico, chamaram-me a atenção a limpeza perfeita e a ausência de crianças com doenças visíveis, assim como a de ambulâncias e macas. Nas duas horas na instituição, não apareceu sequer uma. Também não vi nem escutei criança chorando. Na recepção, só apareceu uma família. Na sala de fisioterapia, só havia duas crianças. Sem qualquer dificuldade de locomoção, elas me olhavam com medo. Antes de entrar no prédio, esperei por meia hora no carro, sob alegação de que a equipe do hospital não estava “pronta” para a minha visita.

Desrespeito aos direitos humanos

Para a comunidade internacional, o cenário de Pyongyang só reforça uma certeza: o desrespeito aos direitos humanos na parte norte da Península Coreana. Nascer com algum tipo de deficiência na Coreia do Norte significa uma chance mínima de sobrevivência, de acordo com o relatório divulgado pela ONG Centro de Banco de Dados para os Direitos Humanos da Coreia do Norte (NKDB, na sigla em inglês). Sediada em Seul, a entidade diz que crianças nascidas com algum tipo de deficiência na Coreia do Norte geralmente são mortas logo após o parto, frequentemente, por seus pais, ou acabam enviadas para experimentos em universidades médicas do país, ou ainda ao misterioso Hospital 83.
“Muitos sabem da existência desse hospital, mas ninguém sabe onde fica”, afirmou um pesquisador da ONG, ao comentar os resultados do relatório, baseado em entrevistas com 100 desertores do regime de Kim Jong-un que viveram no país entre 2010 e 2014. A prática de pais aceitarem a morte de filhos com deficiência ou mesmo desistirem deles é tida como comum na Coreia do Norte, segundo a ONG. Ela denunciou ainda que a população do país que apresenta algum tipo de deficiência é proibida de ver a luz do dia, sobretudo em Pyongyang.

Desde 2000, a Organização das Nações Unidas (ONU) denuncia as violações aos direitos humanos na Coreia do Norte. Mas muito pouco foi feito pelo regime de Pyongyang para cessá-las, de acordo com a comunidade internacional. A morte do estudante norte-americano Otto Warmbier, de 22 anos, que passou 17 meses preso no país asiático, sendo devolvido em coma para morrer nos EUA, apenas acentuou tal impressão.
Em 2009, a Revisão Periódica Universal do Conselho de Direitos Humanos da ONU deu à Coreia do Norte 167 recomendações para a melhoria dos direitos humanos, das quais 87 foram aceitas total ou parcialmente. Entre as 167 sugestões, havia medidas como garantir o acesso a alimentos e remédios para crianças, mulheres e deficientes; proporcionar treinamento em direitos humanos a funcionários do Estado; e ampliar a cooperação com as organizações internacionais que estão trabalhando no campo.

Um relatório histórico de uma comissão de inquérito da ONU em 2014 detalhou uma lista de abusos cometidos no país ao longo das décadas, incluindo tortura, trabalho forçado em campos com presos políticos, abortos forçados, infanticídios e lavagem cerebral. Isto é, além da fome e da incapacidade das pessoas comuns em falar o que pensam e a que assistem diariamente. A mesma comissão recomendou que Kim Jong-un seja denunciado à Corte Criminal Internacional por crimes contra a humanidade, algo que não avançou no Conselho de Segurança da ONU.

Recentemente, a Coreia do Norte rejeitou o pedido de visita a Pyongyang de Tomas Ojea Quintana, representante da ONU para condições dos direitos humanos no país. Quintana esperava embarcar de Seul para a capital norte-coreana, a fim de produzir um relatório a ser apresentado na Assembleia Geral da entidade, em outubro. Para Kim Jong-un, as críticas sobre os direitos humanos no país não passam de mais uma manobra dos Estados Unidos para propagar mentiras contra o país.