DRAMA Raptadas e obrigadas a se casar, o drama de muitas mulheres no Quirguistão Das cinco mulheres que participam deste projeto, só Guljan Turdubayeva aceitou revelar sua identidade, o que demonstra o tabu que persiste em torno da prática do Ala Kachuu

Por: Estado de Minas

Publicado em: 10/07/2017 15:22 Atualizado em:

Já se passaram três anos, mas Guljan Turdubayeva ainda não consegue conter as lágrimas ao se lembrar do dia em que um desconhecido a sequestrou para obrigá-la a se casar com ele.

No Quirguistão, a história dessa jornalista não surpreende ninguém. Os raptos de noivas, uma prática conhecida pelo nome de Ala Kachuu (literalmente "pega e corre"), são recorrente no país, assim como em outros Estados da Ásia central e do Cáucaso.
"Ele era baixo", conta Guljan Turdubayeva, secando as lágrimas. "Fora isso, não lembro dele direito. Nunca o havia visto".

Turdubayeva conseguiu fugir da casa do seu sequestrador, e não voltou a vê-lo desde então.

Mas nem todas têm a mesma sorte. Segundo a ONU, mais de 12.000 mulheres e jovens são sequestradas a cada ano no Quirguistão, frequentemente com a cumplicidade da sua família, que espera assim poder casá-las.

O rapto permite à família da futura esposa receber um dote, em um país onde a tradição de casamentos arranjados não é tão arraigada quanto nos vizinhos Uzbequistão e Tadjiquistão.

Para pôr esses sequestros em evidência, Guljan Turdubayeva e outras quatro vítimas aceitaram que suas histórias fossem transformadas em um desenho animado, realizado por artistas quirguizes.

"As pessoas pensam que o drama do casamento por sequestro se reduz a uma menina jogada em um carro por vários homens, mas não costuma ser assim", explica Tatiana Zelenskaya, uma das desenhistas do projeto "Um dia eles me roubaram".

"O verdadeiro drama começa mais tarde, quando os futuros parentes convencem a menina a ficar", assegura. "Como conseguiram impor a ela sua vontade e porque ela aceita este casamento? Isso é o que eu queria entender".

Estupro

Em um dos desenhos animados, Guljan Turdubayeva se chama "Narguiza". Esta personagem explica como sua tia ajudou a preparar seu sequestro.

"Minha mãe ainda fala com ela, mas eu nunca a perdoarei", diz "Narguiza".
Através da personagem "Begaim", outra vítima relata como o homem com quem tinha que se casar a estuprou.

Das cinco mulheres que participam deste projeto, só Guljan Turdubayeva aceitou revelar sua identidade, o que demonstra o tabu que persiste em torno da prática do Ala Kachuu.

Muitos a parabenizaram pela sua coragem, mas ela também recebeu e-mails com insultos e ameaças, assim como mensagens nas redes sociais, onde os desenhos foram divulgados. A maioria dessas mensagens de ódio foi escrita por homens.

"Alguns me disseram: 'você é idiota', tinha que ter ficado com ele, os dois são quirguizes, e isso é o que importa", conta à AFP.

Pico nos anos 1990 

Sequestrar mulheres para obrigá-las a se casar é uma prática que existe há algum tempo. Já existia antes do Quirguistão se tornar uma República Soviética nos anos 1920, e resistiu às tentativas das autoridades soviéticas de erradicá-la.

Com 80 anos, a irmã do poeta e escritor mais conhecido do país, Chinguiz Aitmatov, se lembra como, em 1959, seu namorado da época a raptou e obrigou a se casar. Foi esposa dele durante quase 50 anos.

Mas os raptos tiveram um novo pico nos anos 1990, após a queda da URSS, quando o país recuperou sua independência.

"Me lembro que na escola uma colega foi sequestrada logo depois do baile de final de ano", explica à AFP Zulfiya Koshorbayeva, que trabalha em uma ONG em Bishkek. "Quase metade das alunas da minha turma se casaram dessa forma".

As autoridades do Quirguistão asseguram que estes casamentos diminuíram graças a uma lei de 2012 que pune os sequestradores com até 10 anos de prisão.

Mas segundo um relatório da ONU de 2016, um terço dos quirguizes ainda desconhecem que o Ala Kachuu é um crime.

É necessário, além disso, que os raptos sejam denunciados, adverte Koshorbayeva. "Para as meninas é difícil denunciar, temem que as suas famílias não as apoiem", aponta.