Funcionalismo público Depressão se transforma na maior causa de afastamento de servidores no Distrito Federal

Por: Correio Braziliense

Publicado em: 25/03/2015 11:55 Atualizado em:

“Eles tiraram a minha arma”, relata Gabriela*, uma escrivã da Polícia Civil do DF, de 46 anos, que, em 2008, descobriu sofrer de depressão. O sujeito “eles”, a que ela menciona, tomou tal decisão para proteger a mulher, inclinada a cometer suicídio nos momentos mais intensos da doença. Mas também se refere ao próprio transtorno. A depressão desestabiliza. Os relatos são de isolamento, fraqueza e dor. Na descrição dos pacientes, é como se perdessem o controle sobre o corpo, a mente e os sentimentos. Como se ele, o transtorno, lhes tirasse a própria arma.

São 23 anos dedicados à Polícia Civil do DF e à família, principalmente ao filho e ao marido. Gabriela se descreve como uma pessoa que nunca vê serviço por fazer e deixa pra lá. Ao contrário. Ela sempre esteve presente e carregou por anos uma enorme sobrecarga de trabalho e de funções. “Vivia com o mundo nas costas.” O primeiro sintoma a surgir foi a falta de sono. Como trabalhava em esquema de plantão, nos dias de folga, não dormia e, no serviço, estava cansada. Gabriela fazia ainda faculdade de direito. No início, desconfiou que fosse labirintite, pelas tonturas que sentia.

“O ápice foi durante um flagrante da Lei Maria da Penha, em que travei. O mundo girava. Me deu  fraqueza e uma sensação de abandono. Fiquei fora de mim. É algo complexo, só quem passa entende.” Ao contar o que sentia para um otorrino, o médico negou a hipótese de labirintite e recomendou que Gabriela buscasse uma ajuda psiquiátrica. A primeira medida da médica foi afastá-la da delegacia por alguns dias, além de prescrever medicação. Começava ali uma batalha diária.

Pesquisas, profissionais da área e o próprio Ministério Público do Trabalho no DF confirmam que a depressão se configura hoje como uma das principais causas de afastamento profissional em diferentes áreas. Segundo dados do Ministério da Previdência Social, em 2014, 388 pessoas no DF se ausentaram por motivo de transtorno depressivo recorrente. Em Brasília, problemas como estresse, depressão e síndrome do pânico correspondem a cerca de 60% dos motivos de ausência de servidores públicos estatutários — não incluídos as polícias Civil e Militar nem o Corpo de Bombeiros —, segundo pesquisa da Subsecretaria de Saúde, Segurança e Previdência dos Servidores (Subsaúde), que analisou ocorrências do biênio 2011 e 2012.

Vilão e mocinho

Assim como mostram os estudos e os comentários dos médicos e psicólogos, o trabalho tem dupla função na vida de Gabriela. É a doença, mas também a cura. “Trabalho não é a causa. Ele é motivador. Além de tudo, no meu caso, tem o contato com as dores e as mazelas da sociedade, que fragilizam. É como um copo de água que vai pingando, mas um dia transborda”, ilustra. O fato se comprova também pelo número de policiais que sofrem com problemas de saúde e, em muitos casos, chegam ao suicídio. Segundo Luciano Garrido, psicólogo e diretor de comunicação do Sindicato dos Policiais Civis do DF, houve cinco casos de suicídio na corporação em, aproximadamente, um ano e meio.

Quando ficou sete meses afastada do trabalho, a vontade de acabar com a dor do transtorno também passou pela cabeça de Gabriela. “Ficou uma lacuna na minha vida e na minha memória”, descreve. As janelas e as portas da casa ficavam fechadas. Ela não queria ver ninguém e não saía de casa. “Só não fiz besteira porque tenho um filho. Mesmo sem a arma, que me tiraram, cheguei a trazer escondido uma outra para dentro de casa. Até carta de despedida escrevi”, diz, emocionada.

Nessa fase, Gabriela tomava 18 comprimidos por dia. Chegou a pesar 160kg porque, além da medicação, o escape da angústia era a comida. A policial passou três dias seguidos sem dormir. Tinha crises de pânico e, ao puxar o ar, não conseguia respirar. “Estava dentro de um buraco. Teria que sair com as minhas próprias forças. Mas, até chegar a essa conclusão, é destrutivo.”
Além da luta contra as dores da alma, os profissionais precisam lidar com estigmas, sobretudo, em carreiras como a de Gabriela, em que o funcionário precisa se mostrar forte.

“Muitas pessoas ainda não aceitam a doença, por não estar visível no corpo. Isso dificulta as relações de trabalho, pois uma vez doente, esse sujeito não estará em condições plenas na sua atividade laboral”, explica a subsecretária da Subsaúde, a psicóloga Luciane Kozicz. Na avaliação dela, a baixa produtividade gera uma sobrecarga de trabalho aos colegas, que não entendem o problema e, com isso, o afastamento do servidor das relações socioprofissionais agrava o adoecimento.

Na hora de voltar à rotina de trabalho, os relatos são, principalmente, de medo e insegurança. Mas, em alguns casos, a retomada é necessária inclusive para a melhora do transtorno. “Desde o início do meu tratamento, a Gabriela saudável é a que trabalha. A afastada não está bem. Mesmo com a minha dor, posso ajudar as pessoas.” Passados alguns anos, a mulher realizou uma cirurgia bariátrica e, após acompanhamento psiquiátrico e psicológico, pulou de 18 comprimidos para dois por dia. “Hoje, posso me olhar no espelho e não ter vergonha de mim. Acreditamos que somos super!, mas você cai na sua humanidade. A certeza de que chegaria em casa, fecharia a porta e estaria protegida com a família, além da fé e do tratamento com terapia, foi fundamental nesse processo.”

Mulheres mais afetadas

A Pesquisa Nacional de Saúde 2014, realizada pelo Ministério da Saúde em 1,6 mil municípios, entrevistando mais de 63 mil pessoas, apontou que a depressão, atualmente, atinge 11,2 milhões de pessoas com 18 anos ou mais no país. O diagnóstico da doença corresponde a 7,6% da população — sendo que a prevalência é de 10,9% entre as mulheres e 3,9% nos homens. A doença é mais comum entre os idosos — 11,1% acima de 60 anos, enquanto que 3,9% dos jovens de 18 a 29 anos relataram ter depressão. Do total dos que afirmaram receber o diagnóstico, 52% disseram usar medicamentos, 16,4% fazem psicoterapia e 46,4% receberam assistência médica nos últimos 12 meses. Os pacientes com o transtorno têm direito a atendimento gratuito pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

*O nome foi preservado a pedido da entrevistada.

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