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Notícia de Divirta-se

ARTE

Para além do mercado, como a pandemia pode impactar criativamente os artistas?

Publicado em: 12/05/2020 09:48

O músico Juliano Holanda diz que o momento é uma espécie de divã. (Foto: Beto Figueiroa/Divulgação)
O músico Juliano Holanda diz que o momento é uma espécie de divã. (Foto: Beto Figueiroa/Divulgação)
 
 
Pandemia, ruas vazias e forte controle social: quando a vida parece absurda, qual é a força do momento naqueles que trabalham com a imaginação e a arte? Outras doenças que já assolaram o mundo mudaram profundamente o olhar de diversos artistas. Ainda que cedo para dizer exatamente como, o novo coronavírus implica mudanças não só em um sentido de mercado ou no consumo da arte, mas também reconfigurando noções criativas dos próprios artistas, que acabam contagiados por temas como finitude, luto, solidão ou até a própria ideia de fazer arte, enquanto outros são afetados de formas mais inconscientes. 
 
Boa parte da história da arte é também a história da imaginação de criadores durante períodos difíceis. A peste, que durou de 1347 até 1351, produziu tanto um terreno fértil para a arte sacra, quanto para elucubrações acerca da morte, tendo como um dos expoentes póstumos a obra O triunfo da morte, de Pieter Bruegel, o Velho. Inclusive, o quadro passou por uma releitura nas mãos do pintor judeu Felix Nussbaum, dessa vez influenciado pelos horrores da Segunda Guerra. Logo no início do século 20, com a pandemia de gripe espanhola, que infectou 500 milhões de pessoas no mundo, o pintor austríaco Egon Schiele produziu um retrato extremamente íntimo de sua família e escreveu a carta: “Querida mãe Schiele, Edith (esposa de Egon) contraiu a gripe espanhola oito dias atrás e tem pneumonia. Ela está grávida há seis meses. A doença é bem séria e ameaça a vida, estou me preparando para o pior”. Edith morreu e, três dias depois, Egon também. Já nos anos 1980, Keith Hering transmitiu sua história e a de outras pessoas infectadas com o HIV, dessa vez em um tom mais lúdico, colorido, ao mesmo tempo, que representava como o silêncio pode ser massacrante para quem contraiu o vírus.
 
O triunfo da morte é uma obra que reverbera bastante impacto da peste. (Foto: Peter Bruguelli/Reprodução)
O triunfo da morte é uma obra que reverbera bastante impacto da peste. (Foto: Peter Bruguelli/Reprodução)
 

Para Rodrigo Acioli, escritor de ficção e editor da Titivillus, apesar de a sua rotina não ter sido radicalmente mudada, os processos de escrita têm sido reconfigurados pela pandemia. “Isso da editora ser dentro da casa alterou pouco meu cotidiano. É um trabalho lento e muito dentro de casa. No entanto, eu não tenho só essa atividade, sou professor de escrita criativa. Agora, temos uma carga muito grande de informações para lidar. Na primeira semana, não consegui entender nada. Fico pensando como vai ser esse outro mundo que vamos descobrir. Eu estou até evitando que as coisas que escrevo se passem no lugar da pandemia, pelo cansaço constante”, afirma.

Em 2018, o escritor pernambucano lançou o livro Todos os dias nascem deuses, uma espécie de enciclopédia ficcional, em forma de contos, que fabulam questões metafísicas. Assim, para ele, o próprio momento aflora o sentimento coletivo de questionamento da nossa realidade e razão, mas também da nossa própria finitude. “A gente está vivendo uma sensação coletiva de finitude. É preciso entender a radicalidade dessa ideia de finitude. Isso já estava presente na minha obra. Há um tempo, existem teorias de filósofos e antropólogos sobre a nova era do antropoceno. Ninguém vai sair ileso, tem gente que vai fazer coisas ligadas diretamente a pandemias, mas outros vão para uma produção pensando na iminência de algum fim”, explica.
 
Divã
O músico e compositor pernambucano Juliano Holanda pensa no momento como uma espécie de divã. Ele diz que tem conseguido produzir em casa, através de uma rotina de consumo de produtos culturais. Em relação à influência do momento vivido em sua criatividade, conta que, ao mesmo que estimula positivamente e negativamente, o contexto passa diretamente pela questão política, sempre atravessada das subjetividades do artista. “A gente vai passar por um processo de análise. Está todo mundo deitado num divâ, consigo mesmo, com seu filho, sua esposa ou sua namorada. Não só os artistas, todo mundo vai passar pr um processo de repensar. Eu não sei se isso, quando a quarentena acabar, vai mudar o mundo, porque o próprio mundo tem seus mecanismos lenitivos. Mas certamente algumas pessoas não vai sair iguais ou impunes dessa situação”, diz Juliano, que compôs, no início da quarentena, a música Cuidado, com versos como “E se vier um vírus / E colocarem máscaras / E se queimarem arquivos / E fabricarem facas / E s lhe derem gritos / E te matarem vivo / Sete fecharem portas / Sete negarem abrigo / Cuidem-se / E cuidem dos seus amigos”.
 
 %u201CAcho que, nesse primeiro impacto, muita coisa foi produzida com esse direcionamento da pandemia e da política, mas a tendência é isso cair mais na rotina e surgir outras problemáticas para os artistas%u201D, avalia Juliano Holanda. (Foto: Renata Pires/Divulgação)
%u201CAcho que, nesse primeiro impacto, muita coisa foi produzida com esse direcionamento da pandemia e da política, mas a tendência é isso cair mais na rotina e surgir outras problemáticas para os artistas%u201D, avalia Juliano Holanda. (Foto: Renata Pires/Divulgação)
 
 
Faz escuro, mas os artistas produzem
A falta de planos e recursos governamentais para lidar com a crise do setor cultural têm deixado a classe artística desnorteada, mas não necessariamente de mãos atadas, pois a criação, de alguma forma, continua. E ainda que as questões latentes da política se misturem com a própria situação pandêmica, surgem outras questões para além da ação e reação. “Acho que, nesse primeiro impacto, muita coisa foi produzida com esse direcionamento da pandemia e da política, mas a tendência é isso cair mais na rotina e surgir outras problemáticas para os artistas”, avalia Juliano Holanda.
 
É necessário pensar para além da política clássica e entender também que o sentido político da arte e do próprio questionamento de sua razão de existir será, por si só, um dos temas de uma vasta produção. Ao menos é uma das apostas de Rodrigo Acioli e Juliano Holanda, bem como do curador e educador Guilherme Moraes, editor da revista Propágulo. “A Bienal de São Paulo esse ano vai se chamar Faz escuro mas eu canto, nome de um poema de Thiago de Mello. Esse título já traz essa ideia que fala tanto sobre o presente para os artistas: existe a tensão aí, pois a ideia do cantor não é condicionada à escuridão. Então o momento passa por um ponto de coragem”, afirma. “Diferente de um serviço emergencial, a arte está em um lugar que ela pensa ‘eu preciso falar? Minha arte precisa ser um comentário desse período?’ É interessante pensar artista nesse lugar de subjetividade, que está separado disso, mas sem significar que o artista está alheio”, continua Guilherme. “Estou me esforçando para produzir. Eu converso com alguns artistas e, de alguma maneira geral, muitos têm trabalhos que estão passando por ressignificações.”
 
Mesmo que agindo de forma não determinista sobre os realizadores, períodos marcantes para a humanidade tendem a produzir um efeito divisor de águas nas obras de artistas. “Eu não pinto a guerra, porque não sou o tipo de pintor que, como um fotógrafo, vai à cata de um tema. Mas não há dúvida de que a guerra existe nos meus trabalhos”, disse Picasso, quando a França saiu do dominio nazista. Todos serão afetados em alguma medida, seja pela exposição ao luto, à solidão do isolamento, ou pela própria questão financeira. Desde quem trabalha com um lado documental, como a cineasta Petra Costa (Democracia em vertigem), que já anunciou a gravação de material sobre distopias causadas pela Covid-19, passando por aqueles que trabalham com temas mais sociais, até os ficcionais. Não dá para se medir em que nível a vida imita a arte ou a arte imita vida, como postulava o ditado popular. Enquanto isso, tudo a se fazer é imaginar as grandes obras, com referências diretas ou indiretas, que surgirão a partir desses tempos sombrios.
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