Ritual de fé Meu primeiro encontro com o Santo Daime Repórter narra experiência em cerimônia de "cura" - física, espiritual e psíquica, como os participantes definem -, na comunidade Céu de São Lourenço da Mata, na RMR

Por: Celso Ishigami - Diario de Pernambuco

Publicado em: 03/09/2015 16:30 Atualizado em: 04/09/2015 18:08

Os recipientes contendo a ayahuasca são dispostos numa mesa ao lado do templo. A comunhão da bebida é conduzida pelos padrinhos ou dirigentes. Foto: Isaías Belo/ Cortesia
Os recipientes contendo a ayahuasca são dispostos numa mesa ao lado do templo. A comunhão da bebida é conduzida pelos padrinhos ou dirigentes. Foto: Isaías Belo/ Cortesia

Um visitante sentado duas cadeiras à minha direita sacudia o corpo na cadência das maracas que marcam os hinos, acompanhando o ritmo com o indicador da mão direita em riste. Com a testa encharcada de suor, ele chorava enquanto, ao mesmo tempo, exibia um sorriso discreto. Fazia pouco tempo que havíamos tomado a segunda dose do Daime e ele se encontrava completamente imerso no trabalho de cura que estava em pleno curso.
Naquele momento, eu ainda tentava encontrar o que os fardados - como são chamados os praticantes da doutrina - chamam de Força e para isso, cantava junto com quase todos os cerca de cem presentes na cerimônia: "Eu canto aqui na terra // O amor que Deus me dá // Para sempre, para sempre // Para sempre, para sempre".

Meu interesse pelo Santo Daime veio antes mesmo da sugestão da minha editora para fazermos uma matéria sobre o tema. Já tinha ouvido e lido relatos de experiências que aguçaram minha curiosidade e, recentemente, um vizinho havia falado sobre a existência de um grupo perto de onde moramos, em Aldeia. Numa pesquisa rápida no Google encontrei o contato do dirigente do Céu de São Lourenço da Mata. Para a minha sorte, fui informado da proximidade de um evento especial daquela comunidade. Em algumas semanas, o grupo receberia a visita de dois proeminentes padrinhos da religião que conduziriam um trabalho de cura - física, espiritual e psíquica, como me descreveram – por meio dos hinos.

Antes de ter a participação aprovada, precisei passar por uma entrevista conduzida por um dos fardados nos fundos de um escritório de advocacia no Centro do Recife. Depois de preencher uma ficha, que mostra uma preocupação peculiar com a saúde mental dos aspirantes às poucas vagas disponíveis para visitantes, fui questionado sobre detalhes do meu interesse naquele trabalho. Deixei claro que havia motivações pessoais e profissionais e não tive problemas com a aprovação de minha participação. Mas, sob a justificativa de que a cerimônia seria restrita aos que dela participassem integralmente, não fui autorizado a levar comigo um fotógrafo do jornal.

Templo consiste de uma estrutura de bambus coberta por uma lona branca, localizado no ponto mais alto do terreno. Foto: Isaías Belo/ Cortesia
Templo consiste de uma estrutura de bambus coberta por uma lona branca, localizado no ponto mais alto do terreno. Foto: Isaías Belo/ Cortesia

Vista privilegiada sob a lua cheia
Por se tratar de um lugar de difícil acesso, ficou combinado que eu iria de carona e, quando me deparei com as crateras na estrada para o centro, fiquei feliz por não ter ido com o meu carro. Fui apanhado pouco antes das 20h da última sexta-feira e, depois de muito sacolejar, encaramos uma descida relativamente íngreme, que terminaria no terreno que abriga o templo. Encravado na face poente de um morro que integra um vale de área preservada na Zona da Mata Norte de Pernambuco, o lugar oferece uma vista privilegiada, que a lua cheia permitiu desfrutar.

Confesso ter chegado ali carregando uma incômoda apreensão pelo que encontraria, mas não demorou para que eu ficasse mais confortável com a primeira surpresa da noite. A heterogeneidade das pessoas que chegavam até de outros estados, como Paraíba e Rio Grande do Norte, era acolhedora. Sem sair da área onde os carros estavam estacionando, vi crianças de colo e senhoras muito provavelmente com mais de 70 anos. Alguns, eu inclusive, espantavam o frio em volta de uma fogueira.

Formado por uma estrutura de bambus e coberto por uma lona branca, o templo fica no ponto mais alto do terreno. Dentro dele, as cadeiras dispostas de maneira a formar um hexágono em torno do altar no meio da estrutura, começaram a receber os participantes mediante convocação pelas badaladas de um sino. Por se tratar de uma ocasião especial, o lugar estava lotado. Em uma metade do templo os homens usavam calças escuras, camisas brancas de mangas compridas e gravatas da mesma cor da calça. Na outra, mulheres vestiam saias escuras, camisas brancas com gravatas borboletas. Aos visitantes, havia sido recomendado o uso de roupas claras.

A cerimônia é quase toda cantada, com violões e chocalhos acompanhando os hinos, que lembram mantras; os músicos se revezam para beber o chá. Foto: Isaías Belo/ Cortesia
A cerimônia é quase toda cantada, com violões e chocalhos acompanhando os hinos, que lembram mantras; os músicos se revezam para beber o chá. Foto: Isaías Belo/ Cortesia

A entrada dos padrinhos no templo não foi cercada por alarde e em instantes eu teria outra surpresa. Eu já tinha ideia do caráter religioso do Santo Daime, mas só ali percebi a intrínseca semelhança com outras manifestações cristãs. Após uma breve saudação, um dos padrinhos abriu a cerimônia com três “Pai Nossos” e três “Ave-Marias”. Veio o primeiro ciclo de hinos. Eu acompanhava tudo num caderninho de letras que me fora entregue momentos antes. Passados alguns minutos, o padrinho convida todos à primeira das três doses de “Vinho da Alma” que seriam oferecidas. Finalmente, chegara o momento de conhecer a ayahuasca.

A comunhão no chá
Da fila que se formava no lado de fora do templo, era possível acompanhar o ritual que os fardados seguem antes de tomar - simples como quase tudo na cerimônia. A maioria acaba participando de uma forma ou de outra da organização. Uns orientam as filas, outros lavam os copos de vidro numa pia rusticamente construída ao lado da mesa onde a bebida é servida. Sem falar nos músicos, que continuam tocando e que se revezam para tomar (sim, eles também tomam o chá). Como numa distribuição das hóstias em uma missa católica, o padrinho e o dirigente servem a bebida aos presentes, que normalmente fazem o sinal da cruz antes de tomar tudo num gole só - esta última faz parte do ritual. Os relatos de que essa infusão de plantas resulta numa experiência de autoconhecimento e que o processo pode ser bem intenso alimentavam minha apreensão com a proximidade da minha vez. Sensação que foi lavada pelo amargor do chá. O gosto persiste e logo descubro a razão dos bebedouros em volta da área.

Volto para a minha cadeira e tento colocar em prática as orientações que havia recebido na entrevista. Encontrar a Força nem sempre é um processo simples e “relaxar e continuar acompanhando a cerimônia” me pareceu um bom conselho. Percebendo minha inquietação inicial, meu vizinho da direita - um advogado bem-sucedido - sugere entre um hino e outro: “Ela vem pra todo mundo.” Fechei os olhos e passei a me concentrar na respiração enquanto repetia as estrofes das músicas. De fato, quando consegui esvaziar a cabeça e me concentrar nos hinos, comecei a experimentar uma discreta sensação de leveza e introspecção. Mas não estive nem perto de ter uma “miração”. Nada de índio dançando ou dragão voando perto de mim.

É bem provável que a expectativa em torno da experiência e a quantidade de coisas novas que aconteciam ao meu redor tenham atrapalhado. Como estava sem relógio, não tenho certeza de quanto tempo passou até que a cerimônia voltasse a ser interrompida para a segunda dose do Daime, mas acredito que tenha sido algo em torno de duas horas. Tentei repetir o mesmo procedimento, mas desta vez, os efeitos vieram ainda mais discretos e decidi que o melhor seria aproveitar para observar detalhes para enriquecer a reportagem.

Durante o trabalho, há citações à Virgem Maria e à José, João Batista e Pedro. Foto: Isaías Belo/ Cortesia
Durante o trabalho, há citações à Virgem Maria e à José, João Batista e Pedro. Foto: Isaías Belo/ Cortesia

O advogado ao meu lado parecia vivenciar uma experiência harmoniosa. Com o rosto voltado para cima e os olhos fechados num semblante sereno na maioria do tempo, ele interrompia seu silêncio de vez em quando, mas somente para acompanhar as letras no hinário e cantar junto com os demais. Seu vizinho da direita (descrito no primeiro parágrafo), por sua vez, certamente experimentava algo muito mais intenso. Sua expressão era de aflição e, alguns minutos depois de tomarmos a segunda dose do chá, ele se levantou meio cambaleante, se afastou alguns passos do templo e começou a vomitar. Algo absolutamente normal na cerimônia. Com exceção de algum fardado, que pode chegar junto de quem está passando mal para oferecer “apoio moral”, aquele e os demais episódios semelhantes simplesmente fazem parte do cenário e passam quase que despercebidos. Depois de vomitar, as pessoas voltam aos seus lugares e ao trabalho.

Cânticos são mantras
Em algumas cerimônias do Santo Daime – como os Bailados - os fardados dançam dentro do templo, mas aquela cerimônia era basicamente cantada. Foram cerca de 80 hinos, com temáticas bem semelhantes. As letras fazem referência a elementos próprios como o Mestre Irineu, fundador da doutrina, o Juramidam (algo como um título conferido ao Mestre Irineu) e as “mirações”, mas também citam personagens que formam a base do cristianismo. Além de Jesus, claro, há várias citações à Virgem Maria e a seu marido José, João Batista e Pedro. De uma maneira geral, os hinos ressaltam a relevância do autoconhecimento, incentivam o enfrentamento dos “caboclos” de cada um e pregam o amor ao próximo e a harmonia com o meio ambiente. Tudo acompanhado da incansável marcação das maracas. Como um fardado me descreveu, “os hinos servem como um corrimão num corredor escuro”. O corredor representando a viagem interna e pessoal. 

Além dos fardados e dos visitantes, também havia seguidores de outras manifestações religiosas que utilizam a ayahuasca em seus rituais, como o Xamanismo. Todos absolutamente integrados ao que acontecia ao redor - embora tenha me deparado com duas mulheres que dançavam em frente à cruz branca próxima à entrada principal do templo, em uma das voltas que dei pelo lugar. Depois de quase sete horas de cerimônia, chegou ao fim a minha primeira experiência com a ayahuasca que, se não foi reveladora em relação ao poder desta bebida, foi engrandecedora pela oportunidade que me deu de conhecer uma manifestação legítima de fraternidade e autoconhecimento.

 



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