ENTREVISTA

"70% da população vai se contaminar", diz virologista

Publicado em: 21/03/2020 16:20 | Atualizado em: 22/03/2020 17:10

 (Fiocruz/ arquivo)
Fiocruz/ arquivo

Entrevista com Ernesto Marques Júnior/ Virologista:

 

Professor associado da Universidade de Pittsburgh/ a Pensilvânia, EUA, lotado no departamento de doenças infecciosas, e pesquisador do departamento de virologia da Fiocruz

O que se pode afirmar hoje com relação à transmissão do novo coronavírus?

Ele é transmitido pelo contato. A segunda forma é através de aerossóis, principalmente em ambiente hospitalar onde existem procedimentos em que gera proximidade entre médicos e pacientes.

 

E sob qual circunstância a sobrevivência do coronavírus depende?

Existe um tempo limitado, não é infinito, mas bem prolongado, a depender da superfície em que ele se encontra. A sobrevivência depende capacidade daquela superfície deixar o vírus que pousou ali se desprender. Superfícies que prendem o vírus e não soltam, as mais porosas, são as mais seguras. Superfícies como plásticos, alumínio, elas não aderem tanto e depositam o vírus mas também soltam o vírus na sua mão. Então, não são boas.

 

Então, as superfícies mais lisas são mais arriscadas?

Sim. E o caso da lavagem das mãos, o papel do sabonete ou sabão é justamente fazer com que o vírus se desprenda da mão. Então, o uso da água nos 20 segundos é muito importante porque é a água que vai espalhar o vírus e desprendê-lo das mãos com a ajuda do detergente.


A lavagem das mãos é importante, mas muito se fala sobre o álcool em gel. Se a pessoa não tiver acesso ao álcool em gel ou faltar no mercado, o que pode fazer?
O álcool é muito eficiente para quando você está nas ruas ou em ambientes diferentes, mas não é superior ao álcool 70% líquido, papel toalha ou pano mesmo. O álcool 70% no geral, o que ele faz é matar. Não solta o vírus, ele mata. Ele torna aquele vírus inviável de infectar outras pessoas. 


E a água sanitária tem essa função também?
A água sanitária mata também e ajuda, sim. Desde que você não dilua muito, vai funcionar. Mas é uma forma comum de inativar vírus e agentes patogênicos em laboratórios. Água sanitária e hipoclorito de sódio. Tem que ter cuidado só com manuseio, se for intensificar o uso, porque, nesse caso, terá outros problemas que não são do coronavírus. A questão é que tem outros efeitos. Se for usar constantemente água sanitária, recomendo o uso de luvas. Mas a água e o sabão são também extremamentes eficazes porque vão limpar a superfície.
O que lhe chama mais atenção como característica peculiar desse vírus?
A principal delas é a taxa de transmissão, o número de pessoas que estão infectadas. Esse número que se refere a quantas pessoas uma pessoa infectada infecta. Não tenho aqui precisão quanto à transmissão, mas é uma das maiores conhecidas atualmente. Perde apenas para sarampo. Estas estatísticas não são precisas porque, para se ter número exato, precisa saber o número de assintomáticos e infectados. E não se sabe ainda e o número de casos confirmados; isso depende muito da disponibilidade de diagnóstico. E, se você não testa um número de pessoas grande, você não sabe número de infectados. 


Por que há tantos casos de pacientes que pegam este vírus e não apresentam sintomas?

Isso é objeto de estudo de inúmeras pessoas no momento. Existem várias hipóteses e uma delas refere-se aos receptores que existem nos coronavírus e estão relacionados à hipertensão e diabetes, que aumentam a expressão desses receptores no pulmão. Esses receptores são da enzima de conversão. O novo Codiv-19 se liga aos receptores, que eu acredito, a partir do nível de dispersão no pulmão, aumentam a chance de atacar, vamos dizer, as vias aéreas inferiores. Na maioria das pessoas ele infecta as vias aéreas superiores e pode parecer um resfriado normal. No momento que encontra um ambiente fácil de infectar as vias aéreas inferiores, a situação complica.
Como os mais idosos têm maior risco de diabetes e diabetes, aumenta a expressão desses receptores. Existem outros fatores que podem estar envolvidos nesse processo ou não. Esses fatores são ligados a anticorpos e às infecções por outros coronavírus que estão circulando entre nós por anos e anos. Eles tanto podem ter papel protetor como papel deletério, modificando a apresentação clínica, como acontece de criança ou adolescente que se infecta mas não fica doente ou fica com sintomas menores. Então, não é todo mundo assintomático.
Uma das razões disso é devido às constantes infecções por coronavírus normais, que geram bastante anticorpos. Mas, quando à medida que se envelhece, seu nível de anticorpos menos frequentes vai diminuindo. O corpo vai mantendo a guarda para os mais recentes. Isso pode ter papel importante na doença em si.


Como o senhor vê o cenário nacional ou em Pernambuco e como o senhor acredita que vai se projetar?
Isso é querer adivinhar o futuro e não é algo fácil; vai depender de como a população responde a essas medidas. Minha impressão é que o Brasil iniciou as medidas de contenção bastante cedo, mais cedo que os Estados Unidos, em relação à situação epidemiológica. Vamos dizer que o Brasil tem entre seiscentos e setecentos casos confirmados, mas esse número oficial e não sabemos quantos casos realmente existem.
Vamos dizer que a proporção não é diferente, vamos dizer três vezes, quatro vezes o números de caso real; aí é quando se torna muito mais ameaçador. Mas vamos dizer que, quando essas medidas estão sendo implantadas nesse final de semana, uma situação de seiscentos casos, é bem diferente. Estados Unidos tomaram medidas similares quando tinha 4 mil, 5 mil casos. A situação epidemiológica é muito diferente e isso deve ajudar muito na contenção.


E o que ainda pode fazer a diferença?
Exatamente isso que eu queria lembrar: é que alguns hábitos precisam ser modificados. Mão nos olhos, nariz, boca. Porque por meio das mucosas, não entra através da pele. Você que toca nessas mucosas e o veículo é a mão. A maior transmissão é o contato e não é necessariamente o ar. O ar é problema, mas no geral não é a maior forma de transmissão.
É problema o ar quando dentro de ambientes pequenos ou em ambientes como hospital e ambulatório. É importante também, para a sobrevivência dos serviços essenciais, que as pessoas consigam estabelecer uma rotina produtiva tomando cuidados. Isso porque a disponibilidade de teste para pessoas saberem se tem ou não é limitado.
Testar todo mundo é a forma de se conter a epidemia e de rastrear o contato com o indivíduo, um controle como fez a Coreia do Sul. O que quero dizer com isso é que, na eventualidade de as pessoas de áreas contaminadas não saberem, o uso da máscara é importante não só para que a pessoa não se contaminem. É para evitar que uma pessoa contaminada possa passar o vírus, por tosse, espirro. Independente de estar resfriado ou não, por causa de alergia, poeira que entrou no nariz. Mas uma pessoa que pode estar carregando o vírus não estaria espalhando o vírus. O uso de máscara tem um papel nesse sentido de não impedir de se contaminar, mas de contaminar o outro.

 

 E qual é a prioridade, já que tem limite de suprimentos?
Todo mundo que tenha sintoma, até mesmo dentro da sua casa, deve usar máscara porque os casos leves não são cuidados em casa. Então, tem que educar para que as pessoas do seu domicílio não contaminem todas elas ao mesmo tempo. Alguém tem de estar saudável e funcionando.
E as pessoas que têm pessoas doentes em casa deveriam usar máscara também quando fossem comprar remédio, fazer pagamento, receber dinheiro. Você tem de sobreviver, no dia a dia, até porque não só o Codiv pode matar.
Quem tiver doente usa máscara, os contatos que têm necessidade de sair de casa também para se evitar que espalhe o vírus porque pode sair gotícula, que coloca ali, a pessoa bota a mão e outra pega e bota na boca, ou no nariz e aí está a cadeia de condução.


Procede a informação de que cerca de 80% são assintomáticas?
Verdade que 80% vão sentir como resfriado normal, que são os que infectam as vias aéreas superiores. Muitas vezes são casos leves, não requer oficialização. Se elas são 100%, não. Tosse seca, febrezinha baixa, mas uns 30% não vão sentir praticamente nada. É um espectro, infinitos tons de cinza de um lado e de outro. Mas quando chega no pulmão, são casos graves, vão causar falta de ar, precisar de uma assistência hospitalar para superar a doença.

 

O que o senhor tem a dizer à uma população que espera o alastramento desta pandemia aqui?
As pessoas precisam ter calma. Não podem deixar o medo controlar a razão e agir racionalmente. O veículo da transmissão é a boca: não pode colocar a mão suja na boca, no olho ou no nariz. E, se você perder esse hábito, a sua chance de se contaminar é muito maior. E eu diria uma recomendação geral é que as pessoas se planejem sobre como farão para reduzir essa cadeia de transmissão de forma inteligente porque a vida não pode parar e não se pode ficar todo mundo trancado dentro de casa por seis meses e achar que está tudo bem. Não vão conseguir. O que precisa é encontrar a forma de adaptar a sua rotina, diminuindo o risco de transmissão.
Uma outra coisa que tem se ter consciência é que essas medidas de contenção adiam ou espalham e distribuem melhor o momento em que cada pessoa se contamina. A doença da forma como se propagou não vai se extinguir como já se extinguiu outras doenças. As medidas de contenção fazem é que, ao invés de contaminar em três ou quatro meses, as pessoas vão se contaminando ao longo dos anos. E aí se ganha tempo que, aos poucos, vão sendo encontradas as melhores formas de lidar com as pessoas e vacinas e baixando a mortalidade. À medida que o vírus vai se adaptando à população humana, ele vai se tornando menos patogênico. 


E qual a projeção geral de contaminação?
Cerca de 60% ou 70% da população vai se contaminar. A ideia é que a população não se contamine de uma vez.

 

 Que terreno esse vírus encontrou para se alastrar tão rapidamente?

A parte de saúde pública é a mais desconsiderada que existe. Especialistas de saúde pública vinham alertado o mundo todo e há vários anos sobre a possibilidade de uma epidemia como esta ocorrer; tudo isso foi previsto há bastante tempo. A questão é que nunca foram levados a sério. A falta do investimento em saúde pública é enorme. A gente continua usando as mesmas ferramentas da Idade Média porque não se investe em pesquisas, não se investe em vigilância epidemiológica, zoonoses, tudo isso é conhecido.
Quantos vírus vão surgindo? a gente vê que a cada quatro anos surge epidemia nova e vem nesse ritmo há vários anos e não vai mudar. A ferramenta que se usa, de quarentena na Idade média, é ridícula. A situação, a tecnologia existe, só não é implementada e levada a sério. Diria que existe, mas a classe médica é subestimada e não é levada a sério. Não tem como tratar 7 bilhões de pessoas no mundo com medicina individualizada, então a medicina coletiva aplicada de forma inteligente reduz custos e o retorno é enorme.
Qual o retorno que geral vacina para poliomielite, sarampo e febre amarela? isso não é contabilizado. E saúde pública é melhor qualidade do ar, da água, do transporte. O que se precisa levar a sério é também o planejamento urbano e tudo isso vem sendo negligenciado. Aí voltam as condições de higiene que mandam lavar as mãos por tantos segundos. Então, essas coisas ficam esquecidas, no segundo plano às vezes.
Ficam preocupados em problemas imediatos. Mas se você só se preocupa com problemas imediatos, vai sempre correr atrás. O que está se fazendo agora é trocar o pneu com o carro andando, como diz o ditado. É lastimável mas não é o fim do mundo. As pessoas precisam ter consciência e tentando tocar a vida da melhor forma possível. 

 

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