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Clarice Lispector e a ideia de que somos uns boçais

Escritora amava a terrinha, mas estado da casa onde morou mostra que esse amor nunca foi recíproco

Publicado em: 10/03/2018 08:17


Sempre (e para sempre) o bairrismo e a boçalidade que advém dele, os dois atribuídos aos pernambucanos, vão me divertir muito. Acho de uma ingenuidade comovente, porque no culto a isto se perde a crítica àquilo que constrange e que também merece ser colocado na balança. Mas coração é território bobo. Digo assim porque, nesta semana, lendo matéria sobre a musculatura e a longevidade da obra de Clarice Lispector, feita por um veículo que merece credibilidade, acabei me emocionando ante uma afirmação: “Apesar de ser ucraniana e de ter morado 15 anos da vida adulta no exterior por ter sido casada com um diplomata, Clarice se considerava pernambucana”. Sabe lá o que significa tamanha deferência? Naturalmente, faço a pergunta a quem não considera “mimimi” assuntos ligados à cultura – esta senhora que abre mentes, janelas e caminhos, embora, infelizmente, a maioria não possa colher, nem mesmo apreciar, os frutos oferecidos por ela. Sim, seria um afago e tanto no ego do estado se o estado tivesse noção da importância do apreço.

Por causa da incapacidade de Pernambuco de reconhecer o óbvio – reforçado pelas repetidas declarações de carinho da escritora – meu coração, que parecia pavão desfilando em jardim imperial, diante do amor escancarado de Clarice pela terrinha, sofreu um choque de realidade ao lembrar do abandono da memória: o sobrado em que ela morou, com vista frontal para a Praça Maciel Pinheiro, segue quase em ruínas enquanto aguarda o fim da conversa (até agora, fiada) sobre o projeto de recuperação. Eu mesma me pergunto quantas vezes ainda precisarei escrever sobre isso, até que o Recife resolva acabar com uma vergonha arrastada a perder de vista. Será que valeria a pena voltar a argumentos irrefutáveis como forma de acelerar o fim do constrangimento? Independentemente da resposta, ei-los: quarenta anos depois de sua morte, a obra de Clarice segue conquistando mais leitores mundo afora e já é comparada à de expoentes da literatura internacional como Virginia Woolf, James Joyce e Katherine Mansfield. A Santa de Misericórdia, dona do imóvel, e a Fundação Joaquim Nabuco, que pediu o tombamento (mas tudo estacionou nesta fase), devem ao menos imaginar o quanto a cidade ganharia com a transformação da casa em espaço cultural destinado a reverenciar vida e obra da autora.

Por essas (nem quero citar as outras) é que o tal bairrismo e a tal boçalidade atribuídos aos pernambucanos são para mim tantas vezes incompreensíveis. O fato de apenas nascer em um lugar não significa que ele mereça todos os louvores e perdões. Muitas vezes é necessário reconhecê-lo como ingrato ou sem recursos intelectuais para valorizar as próprias riquezas, o que, convenhamos, trata-se de um desastre – como a própria ignorância, aliás. Se queremos ressaltar a existência de uma tal “pernambucanidade”, lembremos que o mais realista seria recorrer aos fatos e não aos impulsos. Não é possível, afinal, defender qualquer terra que se recusa a agradecer o amor de estrangeiros que o mundo reverencia. Isto, na melhor das hipóteses, chama -se esnobismo ou algo parecido.
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