Polêmica Especialistas divergem sobre uso em escolas de livro que aborda incesto

Por: Correio Braziliense

Publicado em: 10/06/2017 12:13 Atualizado em: 10/06/2017 12:19

Segundo o ministro Mendonça Filho, outros livros didáticos e paradidáticos aprovados na gestão de Dilma serão analisados. Foto/divulgação
Segundo o ministro Mendonça Filho, outros livros didáticos e paradidáticos aprovados na gestão de Dilma serão analisados. Foto/divulgação
Depois de causar polêmica entre pais e professores, o Ministério da Educação anunciou que vai recolher 93 mil exemplares do livro Enquanto o sono não vem, distribuído por meio do Programa Alfabetização na Idade Certa (Pnaic) para crianças entre 6 e 8 anos de escolas públicas. A decisão foi tomada depois de um parecer técnico da Secretaria de Educação Básica, que considerou a obra inadequada para essa faixa etária.

O conto A triste história de Eredegalda narra a história de um rei que pede uma das três filhas em casamento. Ela nega. Como punição, é aprisionada em uma torre e morre de sede. A personagem chega a pedir a ajuda da mãe e das irmãs, que nada fazem por medo das ameaças de morte do rei. O texto gerou discussões sobre a pertinência do tema para a faixa etária.

A nota técnica da SEB aponta uma inadequação à faixa etária e às competências linguísticas e textuais do estudante. “As crianças no ciclo de alfabetização, por serem leitores em formação e com vivências limitadas, ainda não adquiriram autonomia, maturidade e senso crítico para problematizar determinados temas com alta densidade, como é o caso da história em questão”, diz o documento.

A obra é de autoria de José Mauro Brant. No livro, da Editora Rocco, ele explica a origem do conto. “A história da princesa assediada pelo próprio pai aparece em vários lugares do Brasil com nomes diferentes: ‘Silvaninha’, ‘Valdomira’, ‘Faustina’. A versão aqui incluída foi inspirada em uma recolhida em Barbacena, Minas Gerais, e foi acrescida dos versos de um acalanto denominado Lá vem vindo um anjo”.

Brant disse estar surpreso com a decisão do MEC. O livro, de 2003, integra uma coleção composta de nove títulos que reúne histórias populares recontadas, já foi adotado em diferentes ocasiões por escolas e comprado por governos em 2005 e 2014.  “Percorri o Brasil com uma peça em que essa história é contada. Nunca provocou essa reação”, diz Brant. A estreia do espetáculo com vários contos folclóricos foi há 20 anos, no Museu do Folclore, no Rio.

Críticas


A especialista em psicologia escolar da Universidade de Brasília Maria de Fátima Guerra de Sousa criticou a inclusão do livro na lista de obras destinadas à educação infantil. “Eu acho despropositado para a idade indicada. Não acho conteúdo que precise ser trabalhado com criança pequena, mas com adolescentes, pessoas com mais maturidade. A questão é quais critérios o Ministério da Educação tem para a educação das crianças. Ter sido incluído em outra gestão não importa, isso mostra descaso com a infância.”

Embora não tenha lido a história, o diretor da Fundação Santillana Brasil, André Lázaro, acredita que a literatura paga a conta da coragem. “Tem que tomar cuidado com julgamentos precipitados sobre temas que atravessam o cotidiano de todas as crianças. Proibir não ajuda. É preciso pensar se criamos condições para esse e outros temas serem tratados. Acusar ou culpar o livro é uma tentativa de silenciar temas presentes no cotidiano como violência, exploração, abuso sexual na vida familiar. Condenar não elimina o problema da sociedade, nem acho que seja tema a não ser tratado. Se é capaz de comunicar a emoção e dignidade da personagem em não aceitar, pode ser uma lição”, analisa.

A obra compõe o Programa Nacional do Livro Didático/Pnaic, que seleciona textos literários para contribuir com os processos de alfabetização e letramento de alunos do ensino fundamental das escolas públicas na faixa etária entre 6 e 8 anos. Em 2014, foram selecionados seis acervos de obras literárias com 210 títulos. O livro foi avaliado e aprovado pelo Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale) da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais.

Em nota técnica, o Ceale defendeu a escolha do livro. “O fato de uma obra tematizar incesto, como é o caso de A triste história de Eredegalda, não quer dizer que faça apologia do incesto, ou seja, não é o tema que aborda, mas a maneira como o faz que deve ser considerado pelo leitor. Nesse sentido, é importante lembrar que temas como estupro, pedofilia, fratricídios, violência, alcoolismo, sequestro e incesto, por exemplo, estão tematicamente presentes até na Bíblia. Temos, assim, um conto popular que tematiza, sim, o incesto, porém, condenando-o, ao expor o drama e o sacrifício daquela que poderia ter sido sua vítima”, esclarece.

Em algumas cidades, as secretarias municipais já haviam mandado recolher os livros das escolas. As prefeituras de Vitória e Cariacica devolveram os exemplares. Em Vila Velha, a utilização foi suspensa antes mesmo de ser adotado em sala de aula.

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