Violência Precisamos falar sobre cultura do estupro História de adolescente vítima de estupro coletivo no Rio de Janeiro chocou os brasileiros

Publicado em: 26/05/2016 19:00 Atualizado em: 26/05/2016 19:45

Maria [nome fictício] é uma adolescente de 16 anos. Ela saiu de casa na última sexta-feira, 20 de maio, para dormir na casa do namorado, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Maria despertou dois dias depois, no domingo, em pleno pesadelo: tinham 33 (trinta e três) homens em cima dela. As imagens do estupro coletivo foram exibidas pelos agressores na internet, como troféu, na quarta-feira – a adolescente ainda nem havia voltado para casa. A história de Maria e sua repercussão ajudam a ilustrar a trágica realidade brasileira, onde uma mulher é estuprada a cada 11 minutos, mas não só isso. O corpo ensanguentado e ferido, Maria inconsciente, dopada, expõe a face mais cruel do machismo, a realidade mais indigesta que o patriarcado sustenta e reforça uma urgência: precisamos falar sobre a cultura do estupro.

Protesto será feito no Rio de Janeiro, nesta quinta.

Maria foi encontrada em uma praça, só depois que o vídeo viralizou na internet. Nesta quinta, foi levada para o Hospital Maternidade Maria Amélia, onde passou por exames antes de ser liberada. Tentou fugir de lá várias vezes ao longo do atendimento. “Só quero ir para casa”, disse em entrevista ao jornal O Globo. Agora a Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática do Rio investiga o caso e já identificou dois dos pelo menos 30 criminosos, que terão, também segundo O Globo, as prisões preventivas pedidas. Só na quarta-feira, 800 denúncias foram registradas no Ministério Público do Rio de Janeiro.

Nas redes sociais, foram os movimentos feministas de vários estados que ajudaram a dar visibilidade ao caso. Entre os discursos indignados é constante a afirmação que se tratam de monstros ou doentes os agressores de Maria. Feminista e professora universitária, Nataly Queiroz é enfática ao dizer que não, “doentes não”. “Doença é para ser tratada em terapia. A gente tem visto casos de violência em que os agressores são pessoas normais, não doentes. E eles fazem suas práticas com respaldo da sociedade, onde a mulher, só por existir, é um ser estuprável”, defende a professora, que explica como se estrutura a cultura do estupro.

“É um conjunto de práticas baseadas numa lógica de pensamento que naturaliza a violência sexual contra a mulher, tanto a cis, quanto a trans”. Queiroz aponta as características definidas como pertencentes ao gênero como feminino, como roupas e comportamentos tido como típicos, como elementos de um padrão feminino vulnerável à violência. “Não tem grande diferença entre as práticas consideradas menores, como assédio na rua, puxar uma mulher pelo braço porque ela está andando sozinha, para aquele que chega às vias de fato do estupro”, explica.

No episódio de Maria em especial, a professora acredita que a “banalidade do mau” tão explícita é o que tem chocado as pessoas. “As pessoas não tinham vergonha de compartilhar, de curtir as fotos, de rir publicamente de uma situação que é tão violenta”, avaliou Queiroz, que lembrou outros casos parecidos. “Ano passado teve o caso envolvendo comentários de pedofilia com uma menina de 12 anos que participou do Masterchef. São casos que, volta e meia, vão esfregando na nossa cara o quanto temos um desafio enorme de desnaturalizar essas práticas que são de opressão e violência.”

Para a professora, estes casos também ajudam a mostrar como todas as mulheres são vulneráveis. “Se você fizer uma busca na hashtag do Meu Primeiro Assédio vai ver inúmeros casos praticados contra meninas. Mulheres que não eram vulneráveis porque estavam nas condições geralmente apontadas para justificar. Não estavam sós, não estavam de roupa curta, nem em uma rede social de paquera, nem numa rua em escura. Estavam dentro de suas casas, tinham amizade com o agressor, que era um vizinho, um amigo dos pais, um colega, professores, de diferentes classes sociais e que passaram por violência”, explica.

Secretária executiva de Políticas para as Mulheres da Secretaria da Mulher do Recife, Maria da Conceição Costa conta que ainda é muito forte a culpabilização e responsabilização da vítima. “Essa cultura coloca o corpo da mulher como mercadoria e coloca como se, por ser mulher, ela tivesse essa culpa. Não interessa quem é ela ou o que fez antes. Ela tem direito sempre de dizer não, em qualquer situação. O corpo é dela e ninguém pode tocar. A cultura do estupro é isso: normalizar a coisificação do corpo da mulher e colocá-la como culpada quando, na verdade, é vítima.”

Solidariedade masculina e o papel dos homens  

Além dos comentários que naturalizavam o estupro de Maria e daqueles que a acolhiam, um enorme número de homens se solidarizou o com pai da vítima, que, segundo alguns veículos de comunicação, estava abalado e chorando muito. Nas redes sociais algumas mulheres apontaram o comportamento como mais uma face do patriarcado.

Para Nataly Queiroz, esse comportamento não foge muito do esperado. “É típico. Porque o pai a criou para ser 'a menina de casa' e de repente ela é tratada como 'a da rua'. Se divide isso imaginariamente e é como se esta de casa, assexuada, merece ser bem tratada, diferente de uma mulher da rua, que pode ser atacada por qualquer um.

“Acho que os homens tem um papel fundamental na cultura do estupro. Entendendo que começa com práticas cotidianas, 'brincadeiras' tiradas com amigas, com amigos, com suas companheiras e até a lógica de consumo midiático. Isso começa com um autorreflexão, mas deve ir além. É preciso se colocar como sujeito promotores dessa mudança. É bacana que homens comecem a mudar essa postura e atitudes, mas é preciso ir além, aos poucos, convocando seus colegas, falando sobre isso.”

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