Esqueletos urbanos: uma oportunidade para se repensar a cidade
Zeca Brandão Arquiteto e urbanista, PhD pela Architectural Association School of London e professor titular da UFPE
Publicado: 12/06/2025 às 00:20
Degradação faz parte do cenário urbano no Centro do Recife. Foto: Gabriel Melo/Esp. DP. ()
Um dos grandes desafios enfrentados pelas capitais brasileiras hoje é a degradação dos seus centros históricos. Esses territórios, que representam o ponto de partida da vida urbana e carregam enorme valor simbólico e cultural, vêm sofrendo com o abandono progressivo e um lento e gradual processo de deterioração físico-espacial. O esvaziamento populacional dessas regiões está diretamente ligado à criação de novas centralidades, impulsionadas pelo setor imobiliário que privilegia áreas emergentes da cidade com maior potencial de retorno financeiro.
Na cidade do Recife, esse fato é evidente. Desde meados dos anos 1980, diferentes gestões municipais têm se dedicado a retomar a vitalidade dos bairros centrais. Uma das principais estratégias tem sido a promoção do uso residencial nessas regiões, buscando incentivar a ocupação também nos períodos noturnos, feriados e fins de semana, quando normalmente esses locais se tornam desertos. A proposta ganha ainda mais relevância quando se considera o elevado número de imóveis abandonados ou subutilizados, muitos dos quais poderiam ser requalificados e reocupados.
Entre essas estruturas abandonadas, um tipo chama especial atenção: os chamados “esqueletos urbanos”. Trata-se de edifícios que nunca foram concluídos, compostos basicamente por estruturas de concreto armado, com pilares, vigas e lajes, que ousadamente resistem ao tempo. São ruínas modernas de projetos que falharam antes mesmo de ganharem forma definitiva, prejudicando a paisagem urbana, desvalorizando o entorno imediato e afastando possíveis investidores interessados na reabilitação da área. Embora esses esqueletos se apresentem em diversas regiões da cidade, eles são mais perceptíveis nos bairros centrais, pois além da maioria deles estar localizada nessas áreas, o efeito negativo é intensificado por estarem inseridos em um contexto de patrimônio histórico.
Mais do que simples construções abandonadas, os “esqueletos urbanos” têm ainda um forte impacto psicológico e simbólico. Eles expressam o colapso de uma lógica urbana que, ao longo das últimas décadas, tratou a cidade como mercadoria e excluiu parte da população do direito de vivê-la plenamente. Muitas dessas obras incompletas, com o tempo, se tornaram abrigos improvisados para famílias em situação de vulnerabilidade, expondo os ocupantes a riscos estruturais, sanitários e sociais. Dessa forma, essas estruturas passaram a representar perigo não só para quem circula nas proximidades, mas também para quem informalmente tenta se apropriar delas.
Entretanto, é possível lançar um olhar diferenciado para esses espaços abandonados e transformá-los em um começo promissor de reabilitação urbana. Os “esqueletos urbanos” podem se tornar uma oportunidade única para repensar a cidade, ao serem reinterpretados como potenciais espaços de renovação e inovação. Lugares que escapam das amarras limitadoras do planejamento tradicional e permitem imaginar novas formas de uso e estética arquitetônica. Em um contexto urbano em que a cidade se torna cada vez mais normativa e compartimentalizada, tais espaços representam brechas por onde novas ideias podem florescer.
Nessa perspectiva, a reutilização dessas estruturas pode se tornar uma estratégia inteligente e sustentável para enfrentar os desafios das áreas centrais. A adaptação dos “esqueletos urbanos” para novas funções alinhadas ao morar contemporâneo, como espaços de coliving e coworking pode, por exemplo, contribuir para a construção de uma cidade mais criativa e resiliente. Na medida em que são ressignificados, esses espaços abandonados voltam a integrar a cidade de forma produtiva, rompendo com o estigma da inutilidade e gerando novas interações com o tecido urbano.
Entretanto, é importante destacar que tais transformações não ocorrem de forma isolada. Elas exigem políticas públicas eficazes, incentivos financeiros e uma mudança de mentalidade tanto por parte do poder público, quanto do mercado imobiliário. Para isso, é preciso ver além da aparência degradada desses espaços e enxergar neles a chance de reinventar com mais criatividade o modo como habitamos a cidade. Afinal, quando uma obra inacabada é deixada em estado de abandono, ela representa o rompimento de diversas potencialidades de uso com múltiplas interações urbanas, que permanecem latentes e passíveis de ativação. Reconhecer essas estruturas como parte viva da paisagem urbana constitui um passo simbólico importante na construção de um futuro em que a área central do Recife volte a ser habitada e reassuma seu papel como referência cultural e funcional da cidade.

