A casa de D. Zita, o Cariri olindense e o boi da Macuca na Marim dos Caetés

Márcia M. G. Alcoforado de Moraes
Professora Associado - Departamento de Economia/ PIMES/ PPGEC (UFPE).

Publicado em: 31/01/2019 03:00 Atualizado em:

Sempre fui apaixonada pelo Carnaval. De temperamento introvertido e dada a fantasias, não é de se estranhar que assim o fosse. Talvez a minha lembrança mais longínqua da festa seja a de um, em Triunfo, onde com um misto de temor e encantamento, vislumbrei os “Caretas”. Mais velha, levavam-me a matinées e por ser a única menina em casa, todo o capricho com maquiagem e fantasias eram a mim dispensados. As ladeiras de Olinda só me foram apresentadas aos 17 anos, com o bloco Chego Lá, num veraneio em Pau Amarelo. A sensação que as ruas me deram fizeram-me ver que havia um outro Carnaval. Além da magia e beleza, a festa embutia a mais genuína permissão de auto-expressão que até então eu experimentara: podia-se ser quem se é. Parece paradoxal, mas as mesmas ruas e festa que me fizeram sentir inédita sensação de soltura na adolescência, também “amarraram-me” num laço longevo e mágico. Numa segunda, na rua da prefeitura, alguns Carnavais depois, reencontrei um amigo do bloco e da praia, hoje meu marido há mais de duas décadas e pai dos meus três filhos. Quem sabe abençoado por divindades da festa, o elo, no entanto, longe de prender, libertou-me. Ano passado, com filhos já criados, resolvemos nos mudar para a casa de D. Zita, uma simpática octogenária, nos confins do Amparo, quase Guadalupe. Pouco a pouco fomos nos apercebendo que estávamos, senão no coração, no útero da festa. Foi lá que, veteranos foliões, fomos surpreendidos por duas grandes forças do Carnaval de Olinda, para nós até então inéditas. Uma delas o Cariri Olindense, a troça carnavalesca mais antiga da cidade ainda em atividade. Fundada em 1921, época em que a folia começava no domingo, precisamente às 4hs da manhã com a sua saída. Quase 100 anos depois, a agremiação ainda deixa sua sede na mesma hora, não antes de receber, como uma reverência, a chave-símbolo de sua dissidência famosa: o Homem da Meia-Noite. Acordados pelos fogos no momento em que a agremiação descia, de nossa varanda pudemos ver os passistas prateados. Tantos que pareciam iluminar a madrugada. Atrás uma massa de gente, a maioria da própria comunidade, acompanhava a orquestra com uma força difícil de descrever. A energia que passavam soava como uma declaração, talvez um lema: o de nunca morrer! Com o desfile desenvolvendo-se a vários metros de nossos olhos, revestiram-se de pleno sentido as estrofes do seu hino: “Lá vem Cariri aí! Pegando tudo que a vista alcança”. À tarde da segunda foi a vez do Boi da Macuca. Originário de um sítio no interior, o Boi foi trazido para Olinda em 1989 para integrar o forró tradicional à festa. Há três anos passou a ser conduzido pela orquestra de Oséas e a partir daí mesclar frevos, forrós e música contemporânea nossa, numa junção entre tradição e vanguarda. Arrasta uma multidão, na grande maioria jovens de classe média. Pudemos admirar a curiosa entidade: metade boi, metade multidão, subir em direção à sede do Cariri, com uma força só comparável à da troça quase-centenária que por ali descera, domingo cedo. Surgida numa época em que as agremiações de Olinda eram constituídas por associações de trabalhadores vivenciando a festa em suas próprias comunidades, a troça Cariri continua muito voltada para “dentro”. Fiel às suas tradições foi eleita Patrimônio Vivo do Estado. Já o Boi da Macuca é jovem e vem de “fora”. Emblematicamente, diz-se que as tribos indígenas brasileiras mais interiorizadas só tiveram contato com o homem “branco” quando da expansão do gado. Por isso, o boi foi confundido e até hibridizado na mitologia indígena com esse “outro” homem, pois como ele, externo ao território tribal. Posteriormente integrado, entre algumas tribos passa a ser até venerado, com o seu sangue tornando-se símbolo de semente e procriação. O Carnaval popular, antes restrito aos “de dentro”, atrai cada vez mais, com a sua força, os de “fora”. A festa constitui-se em uma rara ocasião em que não há tensões nesse encontro. Quase uma comunhão, talvez uma trégua, ou quiçá uma oportunidade, a cada ano, de fazer com que esse híbrido boi-homem/multidão acerte o passo e integrando-se definitivamente às suas origens e tradições, torne-se semente de um novo tempo. 


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