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‘Silent Hill f’ retoma e enriquece franquia com estética marcante e história sensível

Após 12 anos, a Konami lançou um game da série principal de Silent Hill; confira a análise

Por Antônio Gois

Screenshot de 'Silent Hill f'

Desde o lançamento do primeiro título da franquia, Silent Hill é sinônimo de horror psicológico. Desenvolvendo-se desde 1999, a história da saga se mistura a da grande maioria dos consoles e se manteve tão relevante nas duas décadas seguintes que transbordou para o cinema e literatura, arrastando seus milhares de fãs para qualquer mídia em que se apresentasse.

Porém, esses fãs foram maltratados por muito tempo. Após o ‘Silent Hill 4: The Room’, de 2004, a Konami, desenvolvedora e publicadora original da saga, resolveu ocidentalizar os lançamentos, sendo os outros quatro jogos principais sendo desenvolvidos por quatro diferentes estúdios americanos ou europeus.

Após não alcançarem as expectativas da críticas e dos fãs, a franquia foi sendo deixada de lado pela Konami, que só abriu os olhos após o começo do desenvolvimento do filme ‘Return to Silent Hill’, esperado para lançar em 2026, e do remake do clássico ‘Silent Hill 2’, que ficou a cargo da Blobber Team, posteriormente sendo um sucesso de público e crítica. Assim, foi anunciado ‘Silent Hill f’, que veio sendo uma grande aposta da gigante japonesa e primeiro título da série original desde 2012, que vai ser lançado no dia 25 de setembro para PlayStation 5, Xbox Series X e S e PC, através da Steam, Microsoft Store e Epic Games Store.

No Japão rural dos anos 1960, a cidade conservadora e altamente supersticiosa de Ebisugaoka se vê vazia do dia para a noite e envolta por uma névoa misteriosa. No centro disso tudo está a jovem Hinako Shimizu. Mantendo um relacionamento complicado com os pais e preocupada em como é vista pela cidade e por seus amigos, a menina precisa desvendar o que está acontecendo com sua casa enquanto mundos diferentes colidem em sua mente.

SILENT HILL F

Sentindo o clima da indústria dos ‘triplo-A’, que atualmente vem produzindo e recebendo aplausos com jogos de horror, sejam novos títulos ou sequências de franquias, a Konami resolveu, finalmente, ressucitar a sua saga de terror mais amada e celebrada mundialmente. Para isso, foi decidido que o novo projeto iria permanecer em casa - em diversos sentidos.

A responsabilidade de desenvolvimento foi entregue ao estúdio hong konger NeoBards, já experiente, mas não exatamente confiável. Próxima da Capcom, a desenvolvedora foi a responsável pelas questionáveis tentativas de trazer Resident Evil ao multiplayer, com Re:verse e Resistance, além de remasterizações, como Devil May Cry HD Collection e Onimusha: Warlords, sendo impossível não mencionar também seu envolvimento com o infame Marvel's Avengers, publicado pela Square Enix. Porém, além do sucesso do remake Silent Hill 2, da também questionada Blobber Team, fãs receberam mais motivos para acreditar em um novo game.

A equipe reunida pela NeoBards chamou atenção logo de cara, especialmente dois nomes: o do escritor Ryukishi07 e o do compositor Akira Yamaoka. Tratado como uma aposta, Ryukishi é autor da popular série de visual novels Whey They Cry (Higurashi no Naku Koro ni e Umineko no Naku Koro ni), onde um grupo de adolescentes precisam reagir a uma atmosfera de horrores inexplicáveis enquanto enfrentam os preconceitos de uma cidade tradicional rural. Yamaoka, por sua vez, é o autor das trilhas sonoras dos Silent Hill clássicos - e isso já diz muito sobre ele. Desse modo, já eram de se esperar uma história e uma trilha sonora digna dos melhores jogos da franquia e, felizmente, as duas são fazem jus a isso.

Ebisugaoka é uma tradicionalíssima vila rural, onde fora das casas todos estão muito bem e os demônios se escondem sob a mesa de jantar. Somos logo apresentados a vivênica de Hinako, que, assim como outros personagens da franquia, está inserida em um ambiente de abuso e pressão psicológica entre quatro paredes. Seu escape acaba sendo Shu, amigo de escola e parceiro de brincadeiras. Porém, esse companheirismo levanta a raiva de outros personagens, desenrolando novas perturbações no enredo.

A partir disso, vamos conhecendo nossa protagonista. O jogo inteiro é um grande mergulho em seus problemas que parecem vir de todos os lados, sufocando uma adolescente já contida e misteriosa que não é aceita nem por si mesma. O roteiro vai construindo sua personalidade de forma inteligente, mostrando a história em um ‘conta-gotas’ e fazendo o jogador descobrir informações antes de Hinako, que realmente não sabe ou apenas as ignora, adicionando um quê de frieza em sua personalidade. A ótima dublagem de Konatsu Kato (no japônes original) revela seus sentimentos profundos, também reforçados pela modelagem e movimentação da personagem, que mostra o quão indefesa ela é diante dos horrores que enfrenta.

Nesse contexto, cria-se um enredo mais sensível do que o normal para a franquia. O folclore criado aqui é ótimo, se debruçando sobre comportamento, questões de gênero e religião tanto implícita quanto explicitamente, misturando bem com os excessos dramáticos apresentados pelos personagens adolescentes, que reforçam essas temáticas, especialmente a visão da mulher perante a sociedade. A história sustenta seu peso até o fim, sabendo bem apresentar seus temas sensíveis o suficiente para o jogador engaje e se sinta chocado, mas criando background o bastante para que muito permaneça implícito. Desse modo, fãs definitivamente vão se debruçar por anos nessa história cheia de significados e segredos, como um grande Silent Hill deve ser.

A trilha sonora do Yamaoka se apresenta de forma mais discreta do que em outros títulos, sabendo aparecer nos momentos onde se pede o drama, de muitas vezes até reforçando o clima desconfortável criado pela história. Ao emular a raiva, confusão e até a melancolia, sua presença pontual, que traz referências à música tema do game de 1999, é um ótimo destaque da parte artística do jogo e constrói boa parte da característica mais esperada quando se fala em Silent Hill: a atmosfera.

Silent Hill f’ é muito inteligente em construir sua ambientação e atmosfera. Para além da clássica névoa densa que limita nosso campo de visão, o game explora sua cidade labiríntica de ruas apertadas para nos mergulhar na vida rural japonesa dos anos 60.

Valorizando sua direção de arte, os mapas externos não abrem mão da iluminação para nos mostrar o grande e estranho vazio que assola Ebisugaoka: as plantações de arroz, casas, lojas e veículos apenas permanecem desolados e parecem grande demais quando são habitados apenas por uma garota adolescente. Nos ambientes internos, o jogo consegue manter a atmosfera tensa ao trazer uma iluminação sóbria que valoriza as sombras e evita deixar a escuridão e jumpscares serem os principais agentes do horror, dando lugar a foreshadowings, efeitos sonoros tensos e level design sufocante, que permitem sequências realmente tensas, que poderiam ser mais utilizadas no decorrer do game. Em ambos os ambientes a exploração é recompensada, a medida que vamos descobrindo histórias de outros personagens, coletando itens e aprendendo mais do folclore do jogo que a trama traz, mesmo que isso o faça cair no uso de cartas para contá-las, armadilha que jogos de horror têm caído com frequência, o que não acontece aqui de forma recorrente, mas está presente mesmo assim.

Os mapas trazidos aqui transmitem muito bem o sentimento que querem passar, sejam eles simulando uma casa conteporânea de colchão no chão e detalhes nas paredes ou templos milenares com seus ídolos dourados e emas decorativas.

Em tudo isso, o game explora sua ideia principal, que é de explorar o horror no belo. Desse modo, a direção de arte brinca com o conceito de beleza e estética, a trazendo de modo inegavelmente bonito, mas tão desconfortável quanto. A presença ameaçadora dos lírios-aranha embeleza e assusta ao mesmo tempo, a medida que eles tomam Ebisugaoka junto aos monstros que enfrentamos. A criação desses é a síntese do que temos visualmente: beleza e horror andando lado a lado para construir uma experiência tensa e atmosférica.

Os visuais dos inimigos exploram bem o imaginário japonês com suas maquiagens tradicionais exageradas e bonecas de porcelana, trazendo também elementos clássicos da franquia como manequins de andar desajeitado e monstros que pulam e imobilizam o jogador por alguns segundos.

O combate, por sua vez, é algo que deve dividir jogadores. Passando longe dos rumores de que seria algo próximo ao que temos nos ‘souslikes’, temos sim uma experiência baseada em vigor, mas trazido de forma diferente na movimentação. Tendo testado os modos ‘História’ e ‘Difícil’ - para observações que vou retomar um pouco à frente da análise - o combate exige adaptação e, na dificuldade elevada, vai punir os jogadores mais teimosos.

Nesses momentos, o jogo reforça a fragilidade de Hinako, que leva um certo tempo para golpear e se mostra desajeitada para o combate em sua movimentação. As armas parecem ser muito pesadas para ela, o que narrativamente funciona bem, mas no quesito de gameplay pode trazer frustrações aqui e ali. O jogo tenta contornar isso, trazendo uma mecânica de contra-ataque, quando o jogador ataca no momento certo, e outra de foco, que diminui momentaneamente a velocidade da cena e permite que o jogador dê um ataque especial. Para ser usado, este último gasta Sanidade, um novo medidor trazido pelo game que também pode ser perdido para ataques inimigos.

No modo ‘Difícil’, os inimigos, especialmente os bosses, tem sua vida bastante elevada e causam muito dano, ao passo que o Vigor de Hinako e suas armas se desgastam de forma acelerada, assim como a Sanidade, conforme seu uso. Porém, no modo ‘História’, a dificuldade é excessivamente mais baixa, ao passo que a vida dos inimigos é bem menor, assim como o gasto de Vigor.

Essa diferença também é sentida na obtenção de itens em geral, bem reduzida no modo mais difícil. Aliás, os itens são um destaque negativo em ‘Silent Hill f’, sendo excessivos, já que existem muitos itens diferentes que pouco mudam de um para o outro. Certo que existe aqui uma mecânica de melhoria de atributos por pontos de Fé, que podem ser obtidas com itens, mas a presença deles poderia ser mais sucinta (além disso, a distribuição de controles para usá-los é ruim e pouco intuitiva e não ajuda em nada não poder fazer uso deles nos menus do game).

Considerando isso tudo, dá para dizer que as dificuldades do jogo são desbalanceadas, ainda mais levando em conta que uma dificuldade extrema fica disponível quando se termina no modo ‘Difícil’. Seria totalmente compreensível a existência de um modo entre os dois primeiros, já que o game não trata o modo do meio como o clássico ‘Médio’ ou ‘Padrão’, mas sim já com uma dificuldade elevada, que pode atrapalhar a experiência.

Também existem modos de dificuldade para os quebra-cabeças, que são criativos e envolvem diferentes mecânicas, que vão de resolver caixas-mistério e posicionar elementos com base na intepretação de texto até desvendar movimentação de objetos.

Ainda sobre o combate, é importante destacar que ele prioriza a precisão da movimentação à velocidade dela já que, como já foi dito, Hinako não é nenhuma espadachim. Sendo assim, apesar das questões citadas, as mecânicas das brigas em si são boas e funcionam, especialmente contra os inimigos comuns, que são bem aproveitados e tem movimentações interessantes, trazendo diferentes ameaças - alguns focam no corpo a corpo, enquanto outros têm habilidades ‘passivas’ que vão minando os atributos do jogador -, o que enriquece bastante a experiência da gameplay.

Como de praxe na franquia, temos aqui diferentes finais, mas apenas um está disponível quando se joga da primeira vez. Durante o tempo em Ebisugaoka, o jogador sempre vai sentir que existe mais um espaço a explorar e mais uma história para ser desvendada, o que, na maioria das vezes, é verdade e cria um fenômeno interessante compartilhado entre os outros games da saga, que é o fator replay. Aqui potencializado pela duração do jogo - que dificilmente ultrapassa as 13 horas, tendo eu terminado em pouco mais de 10 na primeira tentativa - o bom ritmo em que a história se desenvolve, e a quantidade de informações esperando para serem descobertas, o game convida o jogador a descobrir os diferentes caminhos da história de Hinako, que deve se juntar ao panteão dos personagens bem construídos e queridos da saga.

Na somatória, ‘Silent Hill f’ é uma gigantesca retomada de uma franquia importantíssima para a história do entretenimento em um período de tempo certeiro que felizmente está valorizando jogos de horror. Tendo uma veia artística impecável e autêntica, mas inconfundível, o game retorna a saga em grande estilo no mainstream, com cenas sensíveis que demandam estômago, honrando sua fiel legião de fãs e sua classificação indicativa e trazendo de volta, de forma mais do que satisfatória, o maior nome do horror psicológico nos videogames.

*Uma key do jogo foi enviada pela Konami para a produção deste material.