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Definidores discretos da paisagem, pescadores urbanos testemunham soberania da natureza no cotidiano do Recife

Pescadores nas pontes do Centro do Recife desafiam poluição do rio e contam com soberania da natureza para garantir subsistência

Por Marília Parente

Pesca nas pontes é forma acessível de driblar o desemprego

Roberto Silva, de 55 anos, acha o Centro do Recife uma "coisa linda". Ele chegou à ponte Maurício de Nassau de manhã e ainda agora, às 16h de uma quarta-feira escaldante, se recusa a voltar para a Ilha de Itamaracá, onde mora. Toda semana, o pescador faz o insólito trajeto para a capital em busca da pesca em água doce, atividade que compartilha com os amigos de labuta há pelo menos vinte anos.

“Venho passear. Olha a natureza que a gente vê aqui”, diz, apontando para o horizonte, onde o Rio Capibaribe encontra o Oceano Atlântico.

A despeito do encantamento com a paisagem da cidade, Roberto, que vive exclusivamente da pesca, reconhece que o apurado tem diminuído com o passar dos anos. “É muito lixo e esgoto na maré. Os peixes ficam ‘tudo bebo’ e não conseguem crescer muito”, diz Roberto.

Na Ponte Maurício de Nassau, o peixe mais encontrado é o carapeba, que tem bom valor de mercado quanto encontrado na idade adulta. Em alguns mercados, o quilo da espécie chega a custar R$ 35. “Quando passam daqui, eles acabam nas redes de arrasto, de uns pescadores que ficam mais pra frente. Como os buracos delas são muito pequenos, elas matam até os filhotes. É muito triste”, denuncia.

Perto de Roberto, Davi Mendonça tenta viver da pesca indo contra a maré. “Você não tá na hora de morrer”, diz o pescador a um pequeno siri, que devolve ao rio. “Tenho 59 anos, não arrumo emprego mais não. Chego às 12 horas e só vou embora às 6 [horas] da tarde”, acrescenta.

Morador da Ilha de Joana Bezerra, na região central da cidade, Davi viu nas pontes uma oportunidade de pesca acessível, pois não possui embarcação própria. “Trabalhei mais de 35 anos de carteira assinada, mas hoje estou desempregado. Aqui a gente pega muita tainha e carapeba. Leva pra comer em casa e outra parte vende”, acrescenta.

Memória

Para o pescador Cícero Cavalcanti, de 54 anos, o trabalho nas pontes do Centro é uma possibilidade de aproveitar o conhecimento adquirido com o pai, nos açudes de Serra Talhada, no Sertão de Pernambuco. “Pescar de cima das pontes é o modo mais fácil. Sou pedreiro e eletricista, mas como estou desempregado venho para cá”, comenta.

Natural de São Vicente Férrer, no Agreste, José Francisco Silva também vê a pesca nas pontes como, além de uma fonte de renda, uma forma de conservar os hábitos e técnicas de pesca. “Minha mãe me ensinou a passar carvão na rede, porque o peixe não consegue enxergar no escuro da água doce", ensina.

Às vésperas de completar 75 anos de idade, ele se emociona ao contar que poder dedicar a maior parte de seu tempo à pesca é a realização de um sonho antigo. Aposentado após 32 anos de trabalho em uma transportadora, ele não deixava o antigo trabalho nem para dormir. “Eu faltava o trabalho para pescar”, lembra.

Desempenhando diversas funções na empresa, sustentou os três filhos, agora adultos, e a esposa, que faleceu em 2016. Para evitar passar tempo demais sozinho em casa, no bairro do Ibura, Francisco se desloca diariamente até o Centro, onde encontra os amigos de pescaria e passa o tempo.

“Naquela época, pedia a Deus para me libertar. Agora, se eu quiser pescar os sete dias da semana, eu venho. Minha pescaria foi dada por Deus”, completa.