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Sulanqueiros enfrentam medo de assalto, falta de fiscalização e viagens de até 2 dias para o Agreste

O Diario de Pernambuco acompanhou excursão de comerciantes até Santa Cruz do Capibaribe após acidente que deixou 17 mortos no Agreste

Por Mareu Araújo

Santa Cruz do Capibaribe, PE, 31/10/2025 - MODA CENTER SANTA CRUZ DO CAPIBARIBE - Imagens da movimentação no Moda Center em Santa Cruz do Capibaribe.

É o último dia de feira antes de começar a alta temporada em Santa Cruz do Capibaribe, no Agreste, o principal pólo têxtil de Pernambuco. Por volta das 2h, em plena madrugada de sexta-feira (31/10), duas vans e uma caminhonete, todas equipadas com carroças, se preparam para partir em comboio em um posto de gasolina, na BR-232, já próximo à saída do Recife.

Os passageiros, proprietários de lojas de roupa espalhadas pelo Grande Recife, demonstram tranquilidade apesar de um grave acidente ter sido registrado recentemente. Duas semanas antes, na noite de 17 de outubro, um ônibus havia virado na Serra dos Ventos, na altura de Saloá. Foram 17 mortos, a maior tragédia rodoviária em Pernambuco neste ano. As vítimas – em boa parte, lojistas de Minas Gerais e da Bahia – foram a Santa Cruz fazer exatamente o que aquelas pessoas no posto fariam: comprar roupas para revender.

“Aquilo pode ter sido um descuido… O cara pode ter se deparado com alguma coisa na estrada e, quando virou, o carro saiu da faixa”, comenta o motorista Sandro Galvão, de 49 anos, enquanto beberica café, do lado de fora da van, para se manter atento ao trajeto. Junto com a esposa, Claudete Morais, de 50, ele promove excursões para o polo de confecções desde 2010. Naquela noite, o casal iria conduzir 13 passageiros, a maioria mulheres.

As vagas são reservadas por mensagem de WhatsApp. Assim que chega ao ponto de encontro, a maioria prefere subir logo no veículo para escolher a melhor cadeira e garantir pelo menos duas horinhas de sono, o tempo do percurso. Não há lugar marcado ou conferência de RG na hora do embarque. Os poucos que descem dos carros aproveitam para tomar café, alongar o corpo e conversar antes da viagem.

O medo da estrada é um tema recorrente. Para chegar a Santa Cruz, o comboio tem que passar pela BR-232, que liga a capital ao Sertão, e depois pela BR-104, que conecta o Agreste a outros estados. Segundo dados da Polícia Rodoviária Federal (PRF), só nos dez primeiros meses deste ano, já foram registrados 669 casos e 84 mortes na primeira rodovia. Já no trecho pernambucano da segunda, 22 pessoas morreram em um total de 171 ocorrências.

Para os participantes da excursão, o principal motivo para viajar em grupo, no entanto, estaria mais associado a outro risco: o de assalto. “É mais difícil acontecer algo com três carros do que com um só”, argumenta Sandro. “Um carro só chama atenção. Já no comboio, o criminoso pensa: ‘Poder ser que venha um carro atrás… Pode ser que tenha gente armada…’.”

Com todos de cinto de segurança, a van de Sandro e Claudete parte exatamente às 2h40. A expectativa é chegar ao Moda Center, polo comercial que atrai compradores de diversos estados, ainda antes das 5h, horário de abertura da feira.

Jornada

Na maior parte do tempo, a viagem é tranquila e silenciosa. A BR-232 é classificada como “boa” pela Pesquisa da Confederação Nacional do Transportes (CNT) de Rodovias 2024, que avalia as condições das rodovias. O velocímetro de teto, que informa a velocidade do carro para os passageiros, não ultrapassa 100 km/h durante todo o percurso.

Já na BR-104, próximo a Toritama, começam a aparecer buracos na pista. Alguns pedregulhos batem na lataria e assustam os passageiros. “Vixe, Deus”, comenta uma delas, ao ser acordada pelo barulho. A poeira também atrapalha a visibilidade. Na frente da van, Sandro e Claudete seguram o para-brisa com as mãos, um truque para que as pedras não estilhacem o vidro.

A rodovia recebe classificação “regular” pelo CNT. Logo após o município de Pão de Açúcar, a 12 quilômetros do destino final, aparecem os primeiros sinais da feira, com uma fila de carros, ônibus, vans e caminhões na PE-160, uma das vias de entrada para Santa Cruz. Os raios de sol também começam a despontar.

O comboio chega ao Moda Center às 4h50, sem ter sido parado por nenhuma fiscalização. “Vamos acordando, pessoal”, anuncia Claudete, antes de repassar algumas orientações sobre onde o carro ficaria estacionado.

Compras

Dividido em seis setores, o Moda Center Santa Cruz reúne mais de 10 mil pontos comerciais (entre boxes e lojas), praças de alimentação, cerca de 500 vagas para ônibus e vans, além de estacionamento para 6 mil veículos. Entre os frequentadores, estão comerciantes que saem da Paraíba, Rio Grande do Norte, Piauí, Bahia e até do Pará, no Norte do país, atraídos pelo preço e qualidade das peças.

“Eu ia vir de excursão, como sempre faço, mas desisti. Fiquei muito assustada com aquele acidente”, comenta a empresária Keuly Fonseca, de 45 anos, que é proprietária de uma loja de roupas femininas no município de Mãe do Rio (PA). Ela saiu de lá em uma carreta, conduzida pelo marido, José Edson Costa, de 46. O casal viajou mais de 1,8 mil quilômetros. Foram mais de dois dias na estrada.

Keuly faz compras em Santa Cruz há 15 anos. Em junho, costuma aproveitar as peças xadrez para revender no São João. Já em novembro, reabastece o estoque de final de ano e de festas de formatura. Segundo conta, por receio de acidentes, já chegou a discutir com motoristas e até a descer de ônibus, mas nunca pensou em desistir de viajar. “A gente entrega na mão de Deus e embarca no ônibus. Preciso comprar as roupas para meu negócio, não é?”

Aquelas pessoas são o que se apelidou de sulanqueiros. O termo surgiu na década de 1940, em Santa Cruz do Capibaribe, e era usado originalmente de forma pejorativa. Anos depois, a expressão foi usada para dar nome à Feira da Sulanca, que teve sua origem em Santa Cruz e, com o tempo, expandiu-se também para a cidade de Caruaru. “As peças são muito boas e tem um bom preço. Semana que vem estaremos aqui de novo. Faça chuva ou faça sol”, diz Vera Paulino, dona de uma loja em Beberibe, na Zona Norte do Recife.

Ao lado de Vera, está a comerciante Rose Vasconcelos, que também possui um negócio na Zona Norte. Caminhando por um corredor lateral, as duas procuram uma loja de manequins, cabides e araras. “Eu estou investindo no plus size”, conta. Vendedora há 12 anos, ela lembra que começou a comprar peças na Feira da Sulanca, em Caruaru, mas passou a estender a viagem para Santa Cruz, em razão da maior oferta de produtos.

Os corredores têm pouca movimentação e estão tranquilos de caminhar àquela hora. Alguns comerciantes ainda terminam de arrumar suas bancas e vitrines. Já no banheiro, vendedores e clientes do Moda Center dividem as pias para lavar o rosto, escovar os dentes ou se maquiar. As expressões parecem animadas.

Viagens

Na praça de alimentação, restaurantes servem café da manhã reforçado, com pirão, rabada e galinha guisada. O copo de café custa R$ 2. Uma mulher de blusa verde, com um carrinho de mercadoria ainda vazio, come frutas e toma suco de laranja. Ela é Clébia Matos, proprietária de uma loja de roupas infantis em Eunápolis, no sul da Bahia, perto da divisa com Minas Gerais, a 1,2 mil quilômetros de Santa Cruz.

Mensalmente, Clébia vai ao Moda Center em uma excursão que dura pouco mais de um dia. Três motoristas revezam o comando do volante enquanto um segurança armado acompanha a viagem. “Sempre fico com medo, mesmo quando não tinha acontecido o acidente [de Saloá]”, afirma. “É uma estrada. A gente sempre está correndo risco”.

Clébia frequenta o local há 5 anos e diz nunca ter sido vítima de acidente ou assalto. “Agora, incontáveis vezes já fiquei na estrada por conta de ônibus quebrado”, relata. “Trago pouca roupa, geralmente são duas calças, duas blusas e um chinelo. Tudo que cabe em uma mochilinha mesmo. Até mesmo porque sempre que eu volto estou usando uma roupinha nova.”

Moradora de Parelhas, no Rio Grande do Norte, onde mantém uma loja de roupas femininas, masculinas e infantis, a comerciante Socorro Araújo havia saído de madrugada e mal conseguira cochilar na viagem. Ela e duas amigas costumam contratar um motorista particular, segundo conta. “Tenho medo de van, ônibus, excursões, sabe? Acho muito chamativo para assaltos, um carro ‘normal’ porque é mais reservado”, diz.

O movimento no centro comercial cresce à medida que as horas passam. Andando com sacolas para lá e para cá, sulanqueiros vão riscando da lista os itens já comprados. Alguns se frustram com o preço inflacionado de fim do ano. “Na semana passada, comprei por R$ 40. Agora está R$ 45”, reclama Rose, ao retornar das lojas. No estacionamento, placas de carros de passeio, vans e ônibus informam que há veículos que vieram até do Centro-Oeste.

Na excursão de Sandro e Claudete, os participantes se reúnem ao meio-dia para retornar ao Recife. Parte das compras fica guardada na carroça, que, além de malas com roupas, também possui muitas encomendas feitas on-line por moradores da capital. O trajeto da volta segue sem problemas até o bairro do Curado, na entrada da capital, onde um acidente com dois carros atrapalhava o trânsito na BR-232. “Parece que não teve morto”, comenta um passageiro.

Mais à frente, na altura do Hospital das Clínicas, na PE-101, outra batida – dessa vez, envolvendo duas motos. Partes despedaçadas dos veículos ficaram espalhadas pela via. É quando uma das passageiras, preocupada, desabafa: “Graças a Deus, já estou chegando em casa”.