Primeiras crianças com microcefalia causada pelo Zika completam 10 anos
Expectativa de vida para os bebês diagnosticados com a Síndrome Congênita do Zika era de poucos meses; Fundação Altino Ventura (FAV) realizou cerimônia para celebrar o aniversário
Há 10 anos, nasciam em Pernambuco as primeiras crianças com o diagnóstico da Síndrome Congênita associada ao Zika Vírus (SCZ), uma série de anomalias no desenvolvimento dos fetos bebês de mulheres expostas à infecção durante a gravidez e que resultaram em uma má formação dos seus cérebros, deixando sequelas para toda a vida. Desafiando as expectativas de vida de poucos meses, dezenas destas crianças com microcefalia estão completando 10 anos em 2025.
Para as mães, o marco também é pelo reconhecimento de uma década de lutas cotidianas. É o caso de Jayane Cristine, uma das primeiras diagnosticadas com a SCZ no Brasil e a caçula entre três filhos de Crislene Feitosa, de 37 anos. Como a maioria das crianças com o mesmo quadro, Jayane cresceu com microcefalia, déficit ocular, atrofias articulares e motoras, além de membros subdesenvolvidos. Apesar da idade, seu desenvolvimento é de uma criança de poucos meses. Na época, os médicos não esperavam que ela vivesse mais do que 90 dias.
Crislene conta que sua filha não consegue formar palavras nem se locomover sem o auxílio da cadeira de rodas, e não realiza nenhuma atividade básica cotidiana sozinha, como escovar os dentes, se vestir, fazer suas necessidades ou comer. Jayane, no entanto, se alimenta sem a dependência de sondas, com alimentos triturados ou líquidos.
Jayane não frequenta a escola. Após acordar e fazer as refeições, ela passa o dia na Fundação Altino Ventura (FAV) e no Centro de Reabilitação e Valorização da Criança (Cervac), e nas sessões de fisioterapia respiratória no Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (Imip). Ela está sempre acompanhada da mãe da irmã mais velha, Jamilly Cristina, de 18 anos, a quem Crislene se refere como “braço direito e esquerdo”.
“Moramos no primeiro andar, em um beco no [bairro do] Alto José Bonifácio. Desço por uma escadaria carregando a cadeira de rodas pesada com a ajuda do meu marido ou da minha mais velha, depois volto e carrego Jayane. Como ela é grande, não tem trocadores do tamanho dela na rua. Tem que dar banho, trocar. É uma rotina muito desgastante”, contou a mãe.
Crislene é mãe e dona de casa 24 horas por dia. Ela atuava como vendedora de salgados e doces antes do Jayane nascer, mas deixou o mercado de trabalho para se dedicar aos filhos. O pai da família é autônomo e trabalha durante todo o dia, sendo a principal fonte de renda da casa. Sua primogênita ajuda a cuidar dos irmãos durante o dia, e faz faculdade às noites. “Eu costumo dizer que 24 horas no dia não dá, deveriam ser no mínimo 48 horas”, disse Crislene, aos risos.
Além de Jayane, Crislene tem outro filho com deficiência: Juan Jaime, de 15 anos, que sofreu um traumatismo craniano decorrente de uma queda quando ainda era criança. Ele fala e anda sem precisar de auxílios. Ele também faz tratamento na FAV, mas nem sempre ao mesmo tempo que a irmã, tornando a rotina ainda mais corrida e desafiadora.
“Por mais que eu já fosse uma mãe atípica, ela requer 100% da minha atenção. Meu marido teve que trabalhar mais ainda para poder dar conta de transporte, fralda, alimento. Para dar uma qualidade de vida melhor a ela, eu tive que parar de dar atenção aos outros filhos. Jayane atropelou um pouco a infância da sua irmã”, relatou Crislene.
Filhos de mãe solo
Outra realidade comum compartilhada pelas crianças com SCZ é o abandono paterno. Muitos homens deixaram suas famílias assim que a gravidez foi descoberta, enquanto outros foram embora mesmo após anos de convivência com os filhos. Davi Trindade, outro pequeno que completa 10 anos neste ano, tinha um pai presente até os sete anos – é o que relata sua mãe, Milena Carneiro, de 38 anos.
Ele deixou a família três meses depois do nascimento de Maria Alice, segunda filha do casal, hoje com três anos, sem deficiência. Milena conta que ele tem buscado se reaproximar do primogênito, apesar de não marcar presença na vida da mais nova. Ela teme que o motivo do contato seja a indenização e a pensão vitalícia aprovada pelo Governo Lula para as famílias das crianças com SCZ, mas não garante que seja a razão.
Milena, que já estava fora do mercado de trabalho desde o nascimento de Davi, cuida sozinha das duas crianças, “trabalhando” como mãe durante o dia todo.
A rotina “começa” durante a madrugada. O menino necessita de um aparelho BiPap para dormir, e costuma acordar constantemente durante o sono, por vezes precisando trocar as fraldas. A privação de sono de Milena só aumenta ao somar as necessidades noturnas da caçula.
Davi não se alimenta oralmente, e precisa de uma sonda para introduzir os nutrientes de três em três horas. Para todos os cuidados dele, dentro e fora de casa, requer que seja carregado por Milena, subindo e descendo escadas numa pequena residência no bairro do Alto José do Pinho – sem contar, ainda, quando precisa carregar a cadeira de rodas.
“Davi é uma criança extremamente pesada, muito grande. Minha casa é bem pequenininha, só tem um quarto, eu moro numa escadaria. Para eu sair de casa, eu tenho muita dificuldade. Hoje, ralei minha mão para poder subir a cadeira dele. Ele tem a cama no quarto, botei uma caminha na sala. Tenho que carregar ele no braço do quarto para a sala, para o banheiro, para trocar a fralda. Às vezes bate um bracinho, a perninha, e quando vejo está com um um roxo”, declarou Milena.
“O mais importante é Davi estar bem, estar feliz, estar sem sentir dor, estar vivo comigo. Quantas mães nesses 10 anos perderam suas crianças, quantos enterros eu já fui, quantas lágrimas chorei. Eu vi tantos bebês que estavam crescendo. Cada um que se foi nesses 10 anos, foi muito difícil, foi muita luta. O maior presente que Deus poderia me dar é Davi bem e saudável”, complementou.
Altino Ventura celebra aniversário
A Fundação Altino Ventura, que acompanha as famílias das crianças com SCZ desde 2015, realizou um evento nesta quarta-feira (12), no Caxangá Golf & Country Club, para celebrar o aniversário dos jovens e a luta de suas famílias. A cerimônia, intitulada “Mestres do Saber”, entregou diplomas simbólicos para os meninas e meninas, além de presentes para as mães.
A FAV é responsável pelo projeto Semear, responsável por desenvolver pesquisas sobre a síndrome congênita há oito anos. Hoje, o projeto está em sua segunda etapa, estudando o crescimento das crianças ao longo da última década.
“Me sinto muito honrada e orgulhosa dos grandes desafios superados, das grandes realizações em prol da causa da criança com deficiência e da Síndrome Congênita do Zika. Mais do que tudo, coroando essas mães como mestres do saber, que abraçaram essa causa com tanto amor, com tanta superação. Merecem todas as honras e valorização da sociedade”, celebrou a presidente do conselho diretor da FAV, Liana Ventura.