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A seca por Aníbal Fernandes: um repórter rebelde, uma expedição aos sertões e uma cobertura histórica do flagelo de 1932

Na seca de 1932, o repórter Aníbal Fernandes excursionou por quatro estados do Nordeste; ele entrevistou o Padre Cícero, deu voz aos flagelados e descobriu um campo de concentração de pessoas vitimadas pela fome

Por Marília Parente

Aníbal Fernandes, que foi repórter e diretor do Diario

Na madrugada de 24 de abril de 1932, sob clima ameno, o repórter Aníbal Fernandes chegava a Caruaru, no Agreste de Pernambuco, a bordo do valente carro da reportagem do Diario de Pernambuco, que suportou com louvor a precariedade da estrada que ligava a cidade ao Recife. Aos 37 anos, quando já era um dos intelectuais mais respeitados do estado, ele deixou a redação da Praça da Independência, no bairro de Santo Antônio, com a missão de cobrir o flagelo da inclemente seca de 1932.

Através de uma expedição pelos sertões de quatro estados nordestinos, Fernandes introduziu as vozes dos flagelados no Diario, entrevistou o Padre Cícero em pessoa e descobriu um campo de concentração de pessoas vitimadas pela fome em Crato, no Cariri cearense. Desafiando o governo federal comandado por Getúlio Vargas, abordou a fome como problema social e solidificou-se como mestre do jornalismo, com seu estilo ágil e ensaístico, fazendo jus a suas referências literárias mais caras, a exemplo de Molière e Montaigne.

A primeira etapa vencida: Caruaru

A aventura resultou em treze reportagens, publicadas, uma a uma, diariamente no jornal, sob a retranca “A Seca e os seus Flagelos”. Da série, quase todos os artigos foram titulados com o itinerário percorrido, escolha que repetiremos intertítulos desta matéria, a exemplo de “A primeira etapa vencida: Caruaru”, que abria a série jornalística.

À época, Aníbal precisou de nada menos do que cinco horas e meia para vencer a estrada de 138 quilômetros que ligava o Recife a Caruaru. O terreno de vegetação rasteira era repleto de ondulações e, vez por outra, interrompido pela aparição de cactos, que surgiam “como se por tudo houvesse caído uma nuvem cinza”. Caruaru não tinha fama de sofrer com seca e quem primeiro denunciou a gravidade dos acontecimentos que vinham do interior foi o Rio Ipojuca.

Hoje caudaloso, a despeito do impacto da poluição e da gula urbana sobre suas margens, o curso d’água chegou às retinas atentas do repórter resumido a um conjunto desconexo de poças d’água. “O município padece das consequências da longa estiagem. A safra de café está pela metade. A expectativa da safra de algodão é das mais sombrias, se não chover. Quanto aos cereais, a mesma coisa”, observa o repórter.

De Caruaru a Rio Branco

Um novo dia. Foi no trajeto entre Caruaru e Rio Branco, agora chamada de Arcoverde, que as primeiras levas de retirantes cruzaram com o carro da reportagem. O primeiro grupo, composto por sete paraibanos, já estava a seis dias de caminhada do povoado Boi Velho, onde não chovia há três anos.
Aníbal dá pães às crianças esquálidas e questiona seus pais a respeito do destino da turma. “Nada sabiam ao certo. Iam à toa”, relata o repórter.

Adiante, a estrada anuncia novos grupos. Aníbal aborda, desta vez, uma família de Piancó, também na Paraíba. Das páginas amareladas de um jornal de 1932, emergem algumas das primeiras aspas de flagelados da seca de que temos notícia na imprensa brasileira. “Vou por aqui afora, vou para o sul, até onde Deus quiser", depõe um homem de 55 anos.

Dos famintos e esfarrapados, os mais ricos eram aqueles que carregavam um punhado de farinha em mochilas imundas. Aníbal contou mais de 500 retirantes no caminho para Arcoverde, a velha Rio Branco.

De Custódia a Flôres

A chegada em Custódia foi precedida pela angustiante visita do repórter aos ranchos dos flagelados, em Alagoa de Baixo, agora chamada de Sertânia. Avistados como clarões no fundo da mata branca, os acampamentos improvisados reuniam mulheres, homens, crianças e animais misturados à terra seca. Famintos, sedentos e doentes de tifo. No percurso, mais de 40 ranchos foram avistados.

“O inverno este ano acabou. Agora é a derrocada. Os trabalhos nas rodagens são uma gota d'água no oceano. Para a calamidade geral, bem pouca coisa representa: é como uma esmola dada a um mendigo. De Custódia a Flôres, encontramos várias turmas de trabalhadores”, registra Aníbal.

Em Flores, os cereais haviam acabado. Todo mundo estava indo embora. As propriedades tinham perdido o valor. Para os mais ricos da cidade, a previsão irremediável era a miséria. “Um velho fazendeiro, outrora abastado, confessou-nos resignado: ‘não há jeito não, dr. Temos que ir para o cabo da enxada para não morrer de fome’”, escreve Aníbal.

À época, os governos estaduais e federal iniciaram algumas obras, na tentativa de empregar os nômades da seca. A cada progressão de seu itinerário, Aníbal observou as falhas da estratégia e, corajosamente, as expôs em suas matérias.

“Ouvi de pessoas residentes em Flores que só com o serviço de larga envergadura, prolongamentos em todas as estradas de ferro, construções de pequenos, médios e grandes açudes, serviços muitos, daqui e dacolá, se podem atender a situação de maneira geral (sic). As pequenas obras de emergência existentes são uma verdadeira insignificância”, diz o repórter.

De Salgueiro à Zona do Cariri

Dali em diante, a fome começava a matar os retirantes pelo caminho. Crianças, vivas ou mortas, eram abandonadas pela estrada. Quem sobrevivia, matava a fome com xique-xique e macambira. Chegando ao Cariri, o oásis cearense, o repórter deixou-se animar pelo verde que margeava o caminho. Pesqueiros, jatobás, visgueiros, cajuís, paus d'arcos e maniçobas. “O Cariri por si só ainda aguentaria a seca. Mas é impossível abastecer o estado inteiro e mais os retirantes dos estados vizinhos”, conclui Aníbal.

Já era noitinha, quando a reportagem encontrava a cidade de Crato, no extremo-sul cearense, completamente às escuras, com suas ruas repletas de pedintes. Aníbal soube que, a três quilômetros dali, o Governo do Ceará mantinha um campo de concentração com 10 mil flagelados da seca, o Campo de Concentração do Buriti.

Durante a seca de 1932, a administração estadual improvisou outros seis campos do tipo no estado, que ficaram conhecidos como “Currais do Governo”. As construções foram realizadas em locais próximos a linhas férreas, com o objetivo de dificultar a ida dos retirantes para Fortaleza. “Dia a dia, os trens despejam levas e levas de retirantes, vindos de todos os pontos do estado e até dos estados vizinhos Paraíba e Rio Grande do Norte, sobretudo”, nota Aníbal.

Segundo o repórter, no Campo de Concentração do Buriti, os retirantes ficaram aos cuidados do tenente cratense João de Pinho, que coordenava a construção de barracas, para a distribuição de víveres, bem como a acomodação prioritária das mulheres e crianças doentes.

A despeito do esforço dos comerciantes locais em recolher donativos, diz Aníbal, no campo faltava de tudo, de roupas a medicamentos. “No imenso acampamento de retirantes, todos obedecem às ordens e à disciplina. Entretanto, o fanatismo reinante ainda no Nordeste faz com que se vá espalhando no espírito do povo o preconceito de que o governo tem um plano oculto, concentrando os flagelados”, narra a matéria. Segundo o repórter, muitos retirantes preferiam não seguir para o acampamento, em razão de um boato de que o Padre Cícero considerava o local um “curral”. “Outros dizem que de Juazeiro não saem porque, se morrem de fome, vão para o céu, enquanto no Crato vão para o inferno”, conta.

Aníbal entrevista Padre Cícero

Na “burgo do fanatismo nordestino”, conforme refere-se a Juazeiro do Norte, Aníbal é recebido pelo libanês Benjamin Abrahão, secretário pessoal do Padre Cícero. O jornalista árabe ficaria mais conhecido quatro anos depois daquele encontro, como a única pessoa a ter fotografado e filmado pessoalmente Lampião e seu bando. Suas imagens deram origem ao filme “Lampião, o Rei do Cangaço”, que mostra o cotidiano dos cangaceiros.

Ao lado dele, Aníbal atravessa uma multidão de romeiros aglomerados na porta da casa do “Padim”. Sob olhares desconfiados, penetra com facilidade o corredor principal e, dentro de alguns minutos, fica frente a frente com o profeta nordestino. “É um homem alquebrado, arrastando-se
lentamente, guiado por um dos auxiliares”, conta o repórter.

Aníbal pergunta sobre a seca, a fé popular e a política. Padre Cícero fala abundantemente. Critica a Constituição e pede uma legislação que tenha Deus como princípio básico. Ataca a Fundação Ford e os governos que "nos venderam à América inglesa". Revolta-se contra os projetos para transpor a população nordestina ao sul do país. Diz que querem impor ao sertanejo o exílio ou a morte.

Exaspera-se. Em silêncio, o repórter toma nota de tudo, aproveitando-se das sucessivas repetições de palavras e ideias do sacerdote. Registra um último recado para os leitores do Diario e resolve ficar para a homília, que o Padim concede aos romeiros da janela de casa.

Crítico da adoração a Cícero Romão, Aníbal descreve a multidão, “prostrada como a um impulso irresistível, sob a fascinação magnética daquele velho alquebrado, que todos consideram imortal, caído do céu, como um enviado de Deus". E continua: “A nossa comoção é grande. Mas o nosso horror é ainda maior. Sentimos necessidade de sair, de fugir daquele ambiente, daquele centro de fanatismo, que desvaira [...] E no meio da noite fugimos de ‘Joazeiro’ como dalgum 'sabai', cuja atmosfera nos asfixia e nos oprime..”, conclui.

Confira a mensagem enviada por Padre Cícero aos leitores através de Aníbal:

“Envio ao povo do nordeste minha saudação mais calorosa no momento das dores e aflições devido à sêca implacável. Espero que Deus nos dará os meios de vencer esse flagelo que nos oprime, inspirando os nossos governantes no sentido de sacudirem , sem remédios oportunos, as nossas necessidades". (Publicado em 30 de abril de 1932)

“Mimoso colibri”

De Juazeiro, a expedição de Aníbal seguiu pelos sertões do Cariri e Seridó, no Ceará e Rio Grande do Norte, até a Paraíba e o retorno ao Recife, dando nome, rosto e voz aos flagelados da seca. Apenas dois anos depois da viagem, o repórter seria promovido a secretário de redação do Diario, substituindo José dos Anjos.

Frequentador dos ciclos intelectuais do Recife dos anos 1920, o jornalista não poupava críticas a políticos, como os governadores Agamenon Magalhães e Etelvino Lins, e até a colegas de profissão, como Mário Melo, que o apelidou de “mimoso colibri”. No contexto da repressão pós-revolução de 1930, Aníbal passa a assinar seus artigos com pseudônimos e iniciais.

“Em mais de uma ocasião, ele foi agredido por não abrir mão de seus ideais. Ele era um homem corajoso, uma referência para nós que chegamos depois ao jornal”, diz a ex-repórter do Diario Marilourdes Ferraz, autora da biografia “Aníbal Fernandes: nos caminhos da liberdade”.

No livro, a jornalista lembra o atentado sofrido por Fernandes no dia dois de setembro de 1945, em sua casa localizada em Boa Viagem, na Zona Sul do Recife. Segundo a autora, durante um suposto assalto ele foi agredido por um grupo de capangas que haviam se escondido no quintal da residência. Com a roupa ensanguentada e rasgada, ele foi salvo do grupo por vizinhos. As ameaças contra o jornalista, diz o livro, foram levadas ao Coronel Viriato de Medeiros, “mas nenhuma providência foi tomada”.

No mesmo ano, em um contexto de atuação crítica do Diario contra a Ditadura Vargas, Aníbal chegou a ser preso, ao lado de outros jornalistas do veículo, como Antiógenes Chaves e Nehemias Gueiros. À época diretor do jornal, ele também foi responsável pelos editoriais fervorosos do jornal em apoio à causa aliada, durante a Segunda Guerra Mundial. “Por causa do posicionamento, ele foi homenageado com as condecorações internacionais Legion D’Honneour, da França, e King’s Medal, da Grã-Bretanha”, acrescenta Marilourdes.

Em 1949, Aníbal resolve deixar a direção do Diario para aposentar-se. Ele faleceu no dia 12 de janeiro de 1962, no Recife. No mesmo ano, o então prefeito do Recife , Miguel Arraes, autorizou a construção de um busto de bronze em sua homenagem. Construída na Praça da Independência, a imagem do imparável repórter segue eternizada de frente para a histórica sede do Diario de Pernambuco.

Marilourdes Ferraz, mulher pioneira na reportagem do Diario

Biógrafa da Aníbal, a jornalista Marilourdes Ferraz acredita ter sido a primeira repórter mulher a frequentar diariamente a redação do Diario de Pernambuco. Formada em Jornalismo na segunda turma da Universidade Católica de Pernambuco, nos anos 1960, ela chegou à redação do jornal pelo bom texto e pela facilidade com a língua inglesa, incomum para os profissionais da época. “Eu traduzia os telegramas da rainha Elizabeth”, lembra.

Ainda hoje, aos 82 anos de idade, a jornalista sorri ao lembrar dos queixumes do namorado nos finais de expediente. “A redação vivia cheia de homens, que fumavam o tempo todo. E meus cabelos voltavam para casa cheirando a fumaça”, brinca.

Como estudante na segunda turma da Universidade Católica de Pernambuco, nos anos 1960, Marilourdes enfrentou resistência dos pais, que associavam a profissão a homens boêmios e beberrões. Naquele tempo, as mulheres já contribuíam para o jornal assinando colunas enviadas à redação. “Mas foi muito confortável e tive sempre o respeito e o carinho dos colegas. Havia uma camaradagem muito grande. Depois de mim, vieram outras. O Diario de Pernambuco foi minha grande escola”, conta.

LINHA DO TEMPO: ANÍBAL FERNANDES 

1894
Nasce Aníbal Gonçalves Fernandes, no 30 de de dezembro, em Nazaré da Mata, na Zona da Mata Norte de Pernambuco.

1912
Aos 18 anos, quando era aluno da Faculdade de Direito do Recife, inicia sua vida profissional como revisor do Jornal Pernambuco

1914
No dia 17 julho, é contratado como repórter do Diario de Pernambuco, onde passa a atuar também como noticiarista, cronista urbano e comentarista de assuntos internacionais

1928
Afasta-se do Diario de Pernambuco para atuar no jornal “A Província”, de Gilberto Freyre, onde atua até 1930

1932
Aníbal excursiona pelos sertões de Pernambuco, Ceará e Rio Grande do Norte, produzindo a série de reportagens sobre a Seca de 1932

1934
Aníbal assume o cargo de secretário de redação, substituindo José dos Anjos. No contexto de repressão pós-revolução de 1930 passa a assinar seus artigos com pseudônimos e iniciais

1937 - 1945

Contrário à Ditadura Vargas, o Diario de Pernambuco é impedido pelas autoridades estaduais de circular. Jornalistas como Aníbal Fernandes, Antiógenes Chaves, Nehemias Gueiros são presos.

1938
Aníbal é promovido à função de diretor do Diario de Pernambuco

1939 - 1945

Durante a Segunda Guerra, Aníbal publica editoriais fervorosos em apoio à causa aliada, que lhe rendem as emblemáticas condecorações internacionais Legion D’Honneour, da França, e King’s Medal, da Grã-Bretanha.


1945
Aníbal é assaltado e agredido por um grupo de capangas que cercam sua casa, localizada no bairro de Boa Viagem, Zona Sul do Recife, no dia 2 de setembro. De acordo com sua biógrafa, Marilourdes Ferraz, ele chega a ter as roupas rasgadas e manchadas de sangue pelos agressores, mas é salvo por vizinhos. Levado ao Major Alcides Pereira Teles, o caso é ignorado pela polícia.

1949
Aníbal resolve deixar a direção do jornal e se aposentar.

1962
Morre, no dia 12 de janeiro, Aníbal Fernandes. No mesmo ano, o então prefeito do Recife, Miguel Arraes, sanciona lei que autoriza a Prefeitura do Recife a erguer um busto de bronze, na Praça da Independência, em homenagem ao jornalista.