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Da lama ao caos e à eternidade: o adeus a Chico Science

Nona reportagem da retrospectiva dos 200 anos do Diario de Pernambuco conta como foi a despedida e a trajetória do líder do movimento mangue beat

Por Carlos Lopes

Performance de Chico Science no palco

O Recife ganhava o não muito honroso título de quarta pior cidade do planeta. A violência urbana amedrontava o cidadão, que vivia os problemas estruturais da capital, econômicos e sociais, em suas piores versões.

A tão abundante cena artística do estado vivia uma sofrida entressafra. O propalado orgulho de ser pernambucano era tomado por uma apatia generalizada, uma crise de identidade cultural. Não foi fácil aquele início dos anos 1990.

Até que uma batida, ora de maracatu, ora do coco, entrelaçando ritmos como rock, hip hop, soul e funk, fez muita gente perguntar: que som é este? Era mais do que um som, era um movimento revestido pela carapaça da crítica social, de letras fortes, contestadoras e revolucionárias.

A nona reportagem da série retrospectiva dos 200 anos do Diario de Pernambuco faz uma homenagem ao criador e líder do movimento mangue beat, Francisco Assis de França, ou Chico Science.
Sua vida cronológica foi curta, interrompida por um acidente automobilístico, em contraste com extensão do seu legado. O jornal mais antigo em circulação da América Latina registrou em seu acervo a trágica morte e toda a história do fantástico mangue boy.

O acidente
“O cantor e compositor Chico Science morreu, ontem à noite, em um acidente de carro no Complexo de Salgadinho, quando se dirigia para Olinda para visitar alguns parentes. O Fiat Uno branco, placa KHH-7486, em que o líder do movimento mangue beat vinha, foi completamente destruído. Em alta velocidade, ele perdeu o controle do veículo, subiu a calçada e chocou-se com um poste e com a grade de proteção do Parque Memorial Arcoverde.”

Relatava o início do texto que anunciava na primeira página da edição do dia 3 de fevereiro de 1997 do Diario de Pernambuco. “Chico foi levado para o Hospital da Restauração, mas deu entrada já sem vida. O músico apresentava fraturas múltiplas na face, afundamento do tórax e traumatismo craniano.”

A gigantesca legião de fãs de Chico Science sentiu o impacto na alma. Não só em Pernambuco. Pouco menos de seis anos após o lançamento das primeiras canções, o movimento mangue beat havia se consolidado no país. A comoção pela partida repentina do seu líder atingiu o território nacional.

O começo
No começo dos anos 1990, o servidor da Empresa Municipal de Informática (Emprel) Francisco Assis de França começa a se transformar no homem caranguejo, pronto para trocar a tecnologia avançada por uma parabólica enterrada no mangue.

A muda da sua carapaça incluía chapéu de palha e roupa de chita. De Francisco, assumiu o apelido Chico. Da sugestão do amigo e ex-repórter cultural do Diario de Pernambuco, Renato L, veio o ‘Science’, devidamente registrado em cartório.

Com a banda Nação Zumbi, formada pelo baterista Pupilo, os percussionistas Jorge du Peixe, Gira, Gilmar e Toca Ogan, o guitarrista Lúcio Maia e o baixista Alexandre Dengue, lançou o bombástico CD da Lama ao Caos.

Suas letras, seus gestos, seu vestuário não eram mais seus, unicamente. Mas de uma geração inteira contaminada pelos “caranguejos com cérebros”. Eles não resolveram as mazelas sociais e econômicas daquele início dos anos 1990, mas as confrontaram, criaram uma identidade e fizeram uma revolução cultural no estado.


A Cobertura do Diário

A vida de Chico Science foi curta, pouco menos de 31 anos. Mas rica e intensa. E foi o que a cobertura do Diario de Pernambuco procurou mostrar desde que a triste notícia do seu acidente foi recebida na noite daquele domingo de semana pré-carnavalesca.

Repórteres, fotógrafos e editores que não estavam escalados para o plantão do domingo foram convocados e uma força-tarefa foi montada na redação do DP. Ainda impactada com o falecimento repentino do líder do movimento mangue beat, a equipe levou ao público leitor todos os detalhes da morte de Chico, traçando o mais fiel relato da sua trajetória.

Na noite do domingo foi produzido o conteúdo e desenhadas as páginas da edição da segunda-feira, dia 3 de fevereiro. A capa ganhou a manchete em seis colunas “Chico Science morre em acidente”, contrastando com outras notícias sobre os festejos pré-carnavalescos que o próprio Chico tanto curtia.

Duas páginas de Última Notícias foram agregadas à edição. A A8 trouxe detalhes do acidente que causou sua morte. “Talvez por pura ironia, o cantor e compositor Chico Science veio a falecer exatamente próximo ao local que celebrizou em suas canções e do qual fez a bandeira do seu movimento: o mangue”, abria o texto da primeira matéria.

Outra ironia do destino era lembrada na segunda, com o título: “Cantor morre na cidade que o projetou”. Os planos de Chico para o carnaval daquele, entre eles uma participação com Antônio Carlos Nóbrega no bloco Na Pancada do Ganzá, foram lembrados. Assim como as primeiras entrevistas com pessoas bem próximas do mangue boy.

Na página A9, matérias da editora do caderno do Viver, Lêda Rivas, e do repórter de Política Carlos Estênio Brasilino contavam a trajetória de Francisco Assis de França, ainda longe de se tornar Chico Science, e toda a potência do legado que ele deixara para a música brasileira.

A edição da terça-feira, 4 de fevereiro, foi carregada pela emoção da sua despedida, do velório ao enterro, homenagens de fãs e depoimentos de personalidades de todas as áreas.

A capa veio com a marcante foto com carro dos Bombeiros transportando o caixão com o corpo de Chico, acompanhado por milhares de seguidores do movimento mangue beat. Muitos em outros veículos, no cortejo. Muitos outros do alto da passarela do Parque Memorial Arcoverde.

Um caderno de quatro páginas foi preparado para levar ao leitor, e registrar na memória pernambucana, o precoce adeus a um mito da música e da cultura do estado.

A E1 e a E2 relataram a comoção que envolveu os pernambucanos nos últimos momentos antes do enterro. Detalhada matéria trazia novidade sobre o acidente em si que causou a morte de Chico, relatos de um soldado que ajudou a tirá-lo das ferragens logo após a batida, além de homenagens e a repercussão junto a amigos e vizinhos.

A E3 trouxe emocionados depoimentos de representantes de diversas áreas do estado. Entre eles, dois gênios da cultura pernambucana, como o escritor Ariano Suassuna e o percussionista Naná Vasconcelos. E uma matéria com a repercussão da sua morte junto a artistas e bandas nacionais com quem Chico havia desenvolvido parcerias.

Na A4, o repórter Ricardo Novelino mergulhou na trajetória do líder do movimento mangue beat, desde quando a música começou a fazer parte dos sonhos do menino de Rio Doce. A força das letras eternizadas das suas canções foram destaques no tópico “Palavras do mangue”.

No título, no alto da página, um resumo do que se poderia dizer de artista como Chico Science naquele pesado momento: “Da lama à eternidade”.

 


Noite de pizza acabou em difícil missão
(Ricardo Novelino, diretor de Redação do Diario de Pernambuco)

Num passado recente, os editores do Diario de Pernambuco, aqueles das antigas, tinham uma frase pronta para se dirigir aos repórteres mais novos que ficavam na redação após o horário do expediente|: “Soldado no quartel quer serviço”.

Era uma forma de dizer que se o negócio apertasse ou o “mundo caísse”, chamariam quem estivesse por perto para entrar numa possível cobertura.

E aí que começa uma história de um domingo, às vésperas de um carnaval, como tantos outros.

Eu era repórter do jornal e estava num fim de semana de folga. Ou seja, não “estava no quartel”, nem “queria serviço”, mas fui chamado para uma missão, já no meio da noite.

O telefonema foi disparado por Paula Losada, atualmente diretora de Jornalismo do Diario.

Estava em uma pizzaria em Boa Viagem, na Zona Sul do recife, quando vem a “pedrada”.

“Chico Science morreu, num acidente em Olinda”. Em meio ao barulho daquele domingo no restaurante, pendei ter ouvido o nome de outro cantor, com nome parecido, e nem achei que teria que ir trabalhar.

Demorou um pouco, até a ficha cair. Na ligação, a chefe do plantão deu uma determinação expressa: “Vá para a casa da família dele, em Rio Doce”.

Sem terminar a pizza, o jeito foi arrumar um táxi e ir para a redação, na antiga Pracinha do Diário. Era fevereiro de 1997.
No caminho para Olinda, ainda paramos para olhar o resultado da tragédia: o carro do artista estava lá, todo amassado.

Ainda sem acreditar que um cara como Chico Science tinha morrido tão cedo e daquele jeito, fui cumprir a tarefa.

Na casa da família, poucas palavras foram ditas e havia pouco a apurar, além da comoção.

Em seguida, passamos no Instituto de Medicina Legal (IML), em Santo Amaro, no centro do Recife, onde já estavam amigos e alguns fãs.

O pior é que, na véspera, Chico tinha passado em uma prévia carnavalesca, em Olinda.

E, em poucos minutos, havia comentado comigo e outras pessoas que estava voltando de viagem e com muitas novidades.

Tinha até combinado uma possível ligação para uma matéria.
Aquela missão, que começou com um telefonema, em meio a um pedaço de pizza, durou mais alguns dias.

Houve muita comoção em todo o país naqueles dias. Fomos para o velório, cortejo e sepultamento, no cemitério de Santo Amaro.

E ficou mais uma lição do jornalismo. Não é nem preciso estar no “quartel” para ter um “serviço”. Ainda mais uma missão como a cobertura da morte de Chico Science.