Jovem que ficou 6 anos presa injustamente morre dois meses após ser absolvida no RS
Damaris Vitória Kremer da Rosa não resistiu e morreu pouco mais de dois meses depois de ser inocentada, em agosto, quando o caso foi julgado
A jovem Damaris Vitória Kremer da Rosa, de 26 anos, morreu no último 26 de outubro, em Santa Catarina, 74 dias depois de ser absolvida de um homicídio ao qual era acusada de participação, no Rio Grande do Sul. O caso aconteceu em novembro de 2018, na cidade de Salto do Jacuí (RS), e ela foi presa de forma preventiva em junho do ano seguinte.
Detida desde então, Damaris foi diagnosticada com câncer de colo do útero em estágio avançado em março deste ano, embora já apresentasse sintomas desde 2024 e tivesse procurado atendimento médico diversas vezes, queixando-se de dores.
Durante esse período, a Justiça negou os pedidos da defesa para converter a prisão preventiva em domiciliar, medida que só foi concedida após o diagnóstico da doença. Mesmo submetida a tratamento, Damaris não resistiu e morreu pouco mais de dois meses depois de ser inocentada, em agosto, quando o caso foi julgado.
A defesa da jovem critica o Judiciário pelo período de seis anos em que Damaris permaneceu presa preventivamente. Para a advogada Rebeca Canabarro, se ela tivesse deixado o sistema prisional mais cedo, poderia estar viva.
"Talvez, se logo no primeiro requerimento pela prisão domiciliar tivesse sido concedido o pleito defensivo e, portanto, a família tivesse tido a oportunidade de realizar os exames necessários, o desfecho dessa história pudesse ter sido diferente", afirmou a advogada.
Procurado, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) informou que não se manifesta sobre questões jurisdicionais, mas confirmou que três pedidos de soltura foram analisados pelo Judiciário: o primeiro em 2023, o segundo em novembro de 2024 e o terceiro em 18 de março deste ano, quando foi expedido o alvará de soltura. Na ocasião, a ré passou a cumprir a pena em casa, monitorada por tornozeleira eletrônica.
Entenda o caso
Damaris foi acusada de participar do assassinato de Daniel Gomes Soveral, cometido com o auxílio de Henrique Kauê Gollmann e Wellington Pereira Viana, que também foram presos e julgados. Segundo as investigações e a denúncia do Ministério Público, Damaris teria atraído a vítima, com quem mantinha um relacionamento amoroso, até o Santuário Nossa Senhora dos Navegantes, em Salto do Jacuí (RS).
No local, Daniel foi morto com um tiro na cabeça dentro de um carro usado pelo grupo. Ainda conforme a acusação, o trio teria dito à vítima que fariam uma viagem juntos. Daniel estava no banco do motorista, e Henrique Gollmann foi apontado como o autor do disparo.
A denúncia sustentava que Damaris havia "ajustado o assassinato" Henrique executado o tiro e Wellington auxiliado na organização do crime. A Justiça acolheu a denúncia e decretou a prisão preventiva do trio em meados 2019. A defesa de Damaris afirmou que ela não teve participação no homicídio, não foi a autora do disparo e não articulou o assassinato. Alegou ainda que Daniel teria abusado sexualmente da jovem durante o relacionamento.
Henrique foi levado ao Presídio Estadual de Venâncio Aires, e Wellington, ao Presídio Estadual de Santa Cruz. As defesas dos dois não foram localizadas. No julgamento de agosto deste ano, Henrique foi condenado pela morte de Daniel, enquanto Damaris e Wellington foram absolvidos de todas as acusações.
Sintomas: dores no útero na prisão
Em 2024, Damaris cumpria pena no presídio feminino de Rio Pardo. Segundo a defesa, ela precisou ir "por diversas vezes" para o hospital relatando sentir fortes dores embaixo do ventre. Como forma de tratamento, a unidade a receitou o medicamento tramadol.
Segundo a advogada Rebeca Canabarro, a defesa pediu para que Damaris respondesse pelo crime em prisão domiciliar para facilitar na investigação da doença. Mas a solicitação, que também passou pela avaliação do Ministério Público, foi negada porque os receituários não comprovavam nenhuma patologia.
A defesa alega ainda que, no pedido feito, foi juntado um laudo médico que apontava para a existência de imagem indeterminada na região do aparelho reprodutor. Segundo a advogada, porém, foi avaliado que o tratamento oferecido no presídio era suficiente.
Conforme Rebeca, Damaris parou de ser medicada por tramadol e passou a receber apenas dipirona e paracetamol porque havia o entendimento de que a jovem não apresentava nenhuma doença grave. A ré, então, chegou a fazer um pedido de próprio punho para ter a prisão convertida em liberdade, mas foi negado pelo juízo de Salto de Jacuí.
A jovem só teve o diagnóstico de câncer confirmado em março deste ano, quando teve autorização para uma consulta ginecológica particular. "Nessa oportunidade, foi submetida a exame de toque onde estourou uma bolsa de sangue em consultório, tendo sido Damaris submetida a exames que comprovaram a existência de câncer de colo de útero em estágio avançado", disse advogada, em comunicado.
O que diz a Justiça?
De acordo com o Tribunal, embora o segundo pedido de revogação da prisão tenha sido feito por motivos de saúde, a decisão apontou que os documentos apresentados pela defesa eram receituários médicos e não apresentavam "qualquer patologia existente" e não apresentavam "exames e diagnósticos".
No terceiro pedido, acolhido pela Justiça, autorizando Damaris responder pelo crime em casa, o TJ-RS explica que a decisão foi motivada "pelo estado de saúde da ré", visto que ela já estava diagnosticada com neoplasia maligna do colo do útero e necessitava "de tratamento oncológico regular". Após a decisão, Damaris passou a ser monitorada com tornozeleira eletrônica.
Em abril deste ano, ela começou um tratamento combinado de quimioterapia e radioterapia no Hospital Ana Nery em Santa Cruz do Sul (RS), de onde foi transferida para o Hospital Regional em Rio Pardo. No mesmo mês, a Justiça autorizou que Damaris se mudasse para a casa da mãe, em Balneário Arroio do Silva, em Santa Catarina, e que ela se deslocasse até o Hospital São José, em Criciúma, para a continuidade do tratamento oncológico.
Em agosto deste ano, enfim, foi realizado um novo julgamento da ré pelo tribunal do júri, quando ocorreu sua absolvição pelos jurados. Em 26 de outubro, pouco mais de dois meses da sua absolvição, ela não resistiu às complicações da doença. Damaris foi sepultada no dia 27 de outubro, no Cemitério Municipal de Araranguá, em Santa Catarina.
"Esperamos que a história de Damaris seja contada não por um fim em si mesma, porque, assim como ela, existem muitas outras pessoas vitimadas por decisões genéricas que deturpam a ferramenta da prisão preventiva, estendendo a durante longos anos", disse a advogada Rebeca Canabarro.