Frevo marcou boa parte da história do Diario
Registro mais antigo da palavra "frêvo" foi publicado nas páginas do jornal em 11 de janeiro de 1906 ainda como referência a uma movimentação de populares
Mais da metade dos 200 anos de história do Diario de Pernambuco foi marcada pelo frevo. O jornal viu o ritmo recifense nascer e o ajudou a se fortalecer como expressão cultural genuinamente pernambucana, tanto que seu papel na promoção da folia contribuiu para que seu endereço mais longevo se tornasse palco do “Quartel General do Frevo”.
O primeiro passo nesse sentido foi dado em 11 de janeiro de 1906, quando o Diario publicou o registro mais antigo que se tem conhecimento até hoje do termo “frêvo”, na época ainda grafado com acento.
“A Troça carnavalesca mixta Tome Farófa realiza hoje, na Rua dos Ossos, às 7 horas da noite, ensaio de cantorias, sendo executadas as seguintes marchas: O frêvo, Um nickel para bicala, O adubo da farofa”, dizia a nota. Na ocasião, o termo ainda não se referia ao gênero musical como o conhecemos hoje, mas sim a uma movimentação de populares em torno do que ainda era a marcha pernambucana, comum no Carnaval de rua do Recife da época.
Um ano depois, em 9 de fevereiro de 1907, a marcha “O frêvo” ganhou novo registro, desta vez no repertório do bloco Empalhadores do Feitosa, anunciado na coluna de Carnaval do Jornal Pequeno, assinada pelo jornalista Osvaldo de Almeida, sob o pseudônimo de Pierrôt. Como reconhecimento da importância do colunista para a legitimação do estilo, convencionou-se posteriormente, em 1990, que essa última data seria celebrada como marco de origem do frevo.
“O frevo vai crescendo nas formas de organização da classe trabalhadora negra do Recife e Osvaldo vai ter um papel muito importante de trazer esse universo popular, dos clubes de frevo e das troças, para a imprensa, tirando um pouco do preconceito e trazendo isso sem ser questão de polícia”, explica Rita de Cássia Araújo, historiadora e pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco. Também em homenagem a ele, o Dia Nacional do Frevo é celebrado em 14 de setembro, data do seu aniversário
A atuação de Almeida no registro do Carnaval de rua era tão singular que ele chegou a acreditar que teria sido o inventor do termo, como declarou em entrevista ao Diario, em 23 de novembro de 1944, mas essa hipótese foi descartada por diversos pesquisadores. Estima-se que a palavra tenha se espalhado entre populares ainda antes, como indica o registro do Diario de 1906, a partir de uma corruptela do verbo “ferver”, que na boca do povo se transformava em “frever”.
Ainda assim, Rita ressalta que essa imprecisão não diminui a relevância de Almeida, que ajudou a consolidar a cena em seu momento mais duro, ao contrário dos demais jornais em circulação no início do século ~20, incluindo o próprio Diario. Nesse período, embora o bicentenário publicasse parte da agenda dos carnavais de rua, as páginas dividiam espaço com notícias que ligavam a folia popular à barbárie ou que apresentavam um outro modelo de Carnaval, ligado às práticas das festas europeias.
“A imprensa tinha um papel de formador de opinião e dizia aos leitores como se comportar e se vestir em determinadas situações, sobretudo nos bailes que estavam sendo introduzidos aqui no século XIX, mais dirigidos à elite, trazendo muita informação dos carnavais de Nice, Veneza e Roma. Ela se achava imbuída de um papel civilizatório de educar as pessoas e tenta formar uma ideia de Carnaval. Assim, acaba condenando o que está fora disso também, daí tanto preconceito com o maracatu, que era considerado um brinquedo selvagem, e depois com o próprio frevo. Isso propiciava muita perseguição e violência”, comenta Rita.
Diario defende o frevo
No entanto, na década de 1910, o Diario já esboçava seu fascínio pelo frevo ao tentar desmistificar a movimentação que estruturaria o gênero. “O que é frêvo? De onde veio essa voz que não é bem palavra, porque não exprime idéia. É tudo e nada. É a ebulição do goso, o vapor dos nossos instintos animais que a língua não sabe traduzir e só o gesto deixa adivinhar. (...) É elle a vingança dos sem-eira-nem-beira, impossibilitados, à falta de recursos, de tomar parte nos ‘cordões’, nos clubes de fina crítica, nas batalhas elegantes e aristocráticas”, dizia uma crônica publicada no jornal em 22 de fevereiro de 1914, assinada simplesmente por Max.
Não demoraria muito para que o caráter de catarse popular do frevo passasse a ser defendido pelo Diario como um traço da identidade pernambucana, especialmente após a chegada do samba ao Recife, que, à princípio, instalou um clima de rivalidade com as expressões locais. Em matéria de 10 de fevereiro de 1948, intitulada “Escolas de samba: a nota carioca no Carnaval pernambucano”, o Diario contrapunha o ordenamento delas ao espírito arrebatador e subversivo dos clubes de frevo, apontados como verdadeiros representantes do povo pernambucano.
Nessa época, o frevo já era entendido como gênero musical há cerca de uma década, com passo e som bem definidos, e já dividido entre frevo de rua, frevo de bloco e frevo-canção. A partir de 1954, com a fundação da Fábrica de Discos Rozenblit no Recife, a divulgação do estilo ganha ainda mais força nas páginas do folhetim. Não é à toa que, como reconhecimento desse trabalho, a gravadora lança o disco “Carnaval na Pracinha do Diario”, em dezembro de 1974, como homenagem aos 150 anos do jornal, que seriam completos em 1975.
Tratava-se de um LP duplo, com 28 faixas inéditas de 30 compositores pernambucanos, como Capiba, Nelson Ferreira, José Menezes, Gildo Branco e Irmãos Valença, contemplando as três modalidades do frevo, além do maracatu. Entre as gravações estava “Recordações de Jones Johnson”, de Edgar Moraes, que a entregou para José Rozenblit, dono da gravadora, apenas três dias antes da sua morte. As interpretações ficaram por conta de cantores como Getúlio Cavalcanti, Claudionor Germano e Expedito Baracho.
Quartel General do Frevo
O título do disco não poderia ser mais apropriado para resumir a posição central que o Diario passou a ocupar dentro do mapa afetivo da folia recifense e, por consequência, do frevo. Entre 1903 e 2004, sua redação se localizava na Praça da Independência, que ficou popularmente conhecida como a “Pracinha do Diario”. A mesma que, a partir da década de 1950, se transformava no “Quartel General do Frevo” durante o carnaval, permanecendo como o pólo mais tradicional da folia recifense até hoje.
Segundo Rita de Cássia, parte das razões que transformaram o endereço em uma referência para gênero musical está ligada à relação amistosa que se desenvolveu entre as agremiações e as redações. “Tudo aquilo assustou a elite, mas depois vai tendo uma certa acomodação”, esclarece.
A pesquisadora explica que, principalmente após o Congresso Carnavalesco de 1911, os clubes de frevo passaram a se articular com a polícia e os jornais, buscando derrubar o preconceito em torno da cena. “Os clubes aceitaram algumas sugestões da imprensa em troca de cobertura policial ou de aparecer no jornal para ser reconhecido socialmente. A partir daí, eles começam a visitar as redações para divulgar suas atividades e onde o Diario ficava já era um ponto central da cidade, então todos os clubes passavam por ali e se reuniam lá”, diz.
A relevância da “Pracinha do Diario” para o frevo se cristaliza de vez quando a Federação Carnavalesca instala seu palanque por lá, a partir dos anos 30, iniciando o que iria se configurar como o “Quartel General do Frevo”. As agremiações passavam por lá para serem avaliadas pelas comissões julgadoras que elegeriam os melhores passistas do ano, por exemplo.
Ao longo dos anos, a proximidade do Diario com esse ambiente proporcionou ferramentas para que o folhetim se tornasse um defensor ferrenho do gênero musical recifense. A cada nova moda musical que surgia no período carnavalesco e que pudesse ameaçar a hegemonia do frevo nas ruas pernambucanas, o jornal abria espaço para mais reportagens e artigos que debatessem a importância de preservar o estilo.
Para saber a opinião dos leitores, o Diario chegou a fazer um plebiscito popular em 1993, quando artistas baianos dominavam as rádios do Brasil inteiro, sobre a preferência musical dos pernambucanos no carnaval. O resultado apontou que 79,4% escolhiam o frevo, 19% a música baiana, e 1,6% o samba.
Por mais que a sociedade pernambucana voltasse a debater a chegada de novos ritmos no Carnaval do estado a cada ano, a cobertura do Diario, ao fim de cada folia, felizmente sempre chegava a esta conclusão: o frevo reina soberano nas ruas de Pernambuco.
Intitulado “Sua excelência, o frevo”, o editorial da edição de 7 de março de 2000, é um exemplo desse discurso de celebração à resistência do estilo.
“Para o bem de todos nós e felicidade geral dos foliões, os espíritos condenatórios da alma carnavalesca perderam e continuam perdendo as batalhas. O frevo está mais vivo do que nunca, sendo chamariz para o povo enlouquecer no asfalto e nas ruas poeirentas, ‘marcando o passo’, como se estivesse vivendo uma guerra libertária”, dizia o texto.
O editorial ainda seguia apostando no futuro: “Plantas daninhas não vão conseguir criar raízes na história viva do nosso Carnaval. Os pernambucanos irão sempre separar o joio do trigo e o frevo nunca deixará de se impor em todas as épocas presentes e futuras, acordando o espírito de um povo moldado em tradições guerreiras, mas também alegres e solidárias, para a maior de todas as suas festas populares”. A julgar pelo crescimento progressivo dos blocos de frevo visto nas folia seguintes, pode-se dizer que o Diario acertou.