Defesa da vida

José Luiz Delgado
Professor de Direito da UFPE

Publicado em: 17/11/2018 03:00 Atualizado em: 17/11/2018 20:04

Tão elementar que a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da Revolução Francesa nem precisou proclamar, o direito à vida não pode consistir somente no direito de não ser morto, não ser retirado da existência senão por causas naturais. Direito complexo, começa com o próprio começo da vida humana: com a proibição de matar o feto, proibição do aborto (a não ser que se demonstre que o embrião não é o começo de um ser humano...) e compreende obviamente a integridade física  (portanto, o direito de não ser torturado), bem como o direito à privacidade (à vida privada, à intimidade)  e à subsistência (direito ao trabalho e à aposentadoria).

Violam evidentemente o direito à vida a tortura e o assassinato de presos. Também violam o direito à vida a “luta armada”, o terrorismo e a guerrilha, que jogam bombas sobre inocentes, ou que fuzilam e matam, ou que procedem a “justiçamentos”.

Houve uma página horrorosa na história brasileira recente em que, sim, o regime autoritário, presidido por militares, torturou e matou guerrilheiros e prisioneiros – e, portanto, violou o direito à vida. Combatiam (e venceram) grupos terroristas que, armando-se contra o governo, matavam inocentes e jogavam bombas – e que, portanto, violavam do mesmo modo o direito à vida. Quantos foram esses inocentes vitimados pelos terroristas? Quantos, os presos torturados e mortos pelo governo? Não importa o número exato, nem mesmo verificar que foram muitíssimo menos do que em países sul-americanos vizinhos. Terão sido centenas de um lado e de outro. Bastaria um único caso, porém, para que a ignomínia se concretizasse e todos devêssemos nos revoltar contra ela.  Nem importa referir que o terrorismo atingia inocentes ao passo que a tortura se abatia sobre criminosos. Naquela hora excepcional e cheia de radicalismos, esses absurdos de ambos os lados foram duas barbaridades –  uma praticada por bandidos contra o governo, a outra pela própria autoridade (e isto é particularmente grave porque a autoridade deveria cumprir a lei e dar exemplo, mas, ao invés, oprimia prisioneiros que estavam sob sua guarda e portanto sob sua proteção, prisioneiros a quem lhe cabia proteger e não torturar).

Indigência intelectual é somente ver e somente denunciar um lado – qualquer que seja – e esquecer e omitir o outro. Esse parcialismo, esse unilateralismo, essa seletividade não honra a inteligência. Revela tendenciosidade, paixão, viseira mental, mediocridade, tudo ao contrário de um espírito livre e sereno. Pior ainda se esse parcialismo é proclamado por um clérigo, que quer fazer a cabeça dos fiéis, metendo-se no que não deve, pretendendo impor unidade de pensamento num campo, o das coisas de César, o da política, em que o pluralismo é legítimo, e a Igreja admite que cada cristão faça suas próprias avaliações segundo seus estudos, seu conhecimento e sua consciência pessoal. O bom pastor tem perfeita consciência de sua missão, de seu papel e de seus limites: sabe-se voz da unidade e da transcendência e deve distinguir seu juízo pessoal (que, como cidadão que também é, tem todo direito de fazer, seja num sentido, seja no outro) da orientação que deve dar à comunidade, a qual dele espera não opiniões políticas mas palavras de vida eterna.

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