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Cemitério de Santo Amaro: onde repousa a memória do Recife

Localizado na Rua Marquês do Pombal, no bairro homônimo, o cemitério ocupa uma área de 145 mil metros quadrados

Por Larissa Aguiar

Dom Fernando Saburido, decidiu quebrar hoje o silêncio sobre as denúncias de que padres e outros membros de irmandades da Igreja Católica podem estar envolvidos na venda ilegal de túmulos no Cemitério de Santo Amaro. Foto: Blenda Souto Maior/DP/D.A Press

Na confluência do tempo e da memória, repousa o Cemitério Senhor Bom Jesus da Redenção de Santo Amaro, o maior campo-santo da capital pernambucana. Inaugurado em 1º de março de 1851, em meio ao surto de febre amarela que assolava o Recife, o cemitério foi a resposta sanitária e arquitetônica a um tempo em que os mortos não podiam mais ser sepultados nas igrejas. Mais de 170 anos depois, Santo Amaro permanece vivo como um dos mais importantes monumentos históricos da cidade — um museu a céu aberto onde arte, política, religiosidade e memória se entrelaçam.

Localizado na Rua Marquês do Pombal, no bairro homônimo, o cemitério ocupa uma área de 145 mil metros quadrados. Com estrutura para mais de 20 mil túmulos e 9 mil ossuários, abriga uma média de 18 mil visitantes por mês, entre familiares, pesquisadores, curiosos e turistas. Seus portões se abrem diariamente para sepultamentos entre 11h e 17h, mas suas portas simbólicas permanecem abertas à história do Recife.

Uma resposta à epidemia
Executado pela equipe de Obras Públicas sob coordenação do engenheiro José Mamede Alves Ferreira, o projeto do Cemitério de Santo Amaro foi adaptado a partir das diretrizes elaboradas por uma equipe científica composta por médicos do Conselho de Salubridade Pública e pelo engenheiro francês Louis Léger Vauthier. A construção teve início no governo de Francisco do Rego Barros e rompeu com o antigo costume de sepultar os mortos nas igrejas. A epidemia de febre amarela exigia soluções sanitárias mais seguras e modernas.

A planta arquitetônica, em estilo radial, organiza os túmulos em ruas que partem de um ponto central. No coração do espaço, foi erguida uma capela de estilo gótico, também com execução sob responsabilidade de Mamede Ferreira, construída em 1853 pela Câmara Municipal. Trata-se de um monumento de cruz grega, fechado por uma só abóbada, sem campanário, austero e imponente. Restaurada em 1899 e novamente em 1930, a capela continua sendo ponto de referência para quem circula pelas alamedas do cemitério.


Mais do que um local de sepultamento, o Cemitério de Santo Amaro é a uma exposição de arte ao ar livre de Pernambuco. Ali estão erguidos mausoléus monumentais, verdadeiras obras de escultura e arquitetura funerária. “A materialidade da morte, em Santo Amaro, foi transformada em linguagem artística. É uma galeria a céu aberto que expressa valores simbólicos, políticos e afetivos das elites pernambucanas”, destaca a historiadora Vanessa Sial.

Nomes centrais da história política e cultural de Pernambuco estão ali sepultados. De Joaquim Nabuco a Agamenon Magalhães; de José Mariano a Manuel Borba; do Barão de Benfica ao Conde da Boa Vista. Artistas e intelectuais também repousam sob os mármores esculpidos: é o caso de Mário Sette e do cantor e compositor Francisco de Assis França, o eterno Chico Science, cuja lápide é ponto de romaria cultural.

A imponência de alguns túmulos contrasta com a simplicidade de outros. Em suas 20.520 sepulturas, cabem todos os recortes sociais de uma cidade marcada por desigualdades. Cada lápide é um testemunho do tempo, de dor, de memória e de resistência.

Devoções populares
Além da arquitetura e da história oficial, Santo Amaro também guarda manifestações de fé popular. Uma das mais comoventes é a devoção à Menina Sem Nome, cuja sepultura é diariamente visitada por pessoas que acendem velas, depositam brinquedos e fazem orações. No Dia de Finados, o túmulo dela é o mais visitado de todo o cemitério, superando até mesmo os das personalidades históricas. É uma fé silenciosa, que se sustenta na esperança e no mistério.

Patrimônio vivo
Tombado como patrimônio cultural do Recife, o Cemitério de Santo Amaro é também um arquivo vivo da cidade. Através de seus registros, é possível traçar linhas genealógicas, reconstituir biografias e mapear episódios históricos como as vítimas de epidemias, de confrontos políticos e de desastres naturais.

“Estudar Santo Amaro é estudar o Recife”, resume Vanessa Sial. “Ali estão reunidas histórias de famílias tradicionais, mas também de anônimos que ajudaram a construir a cidade. É um espaço de pertencimento e de pesquisa, onde o passado está escrito em pedra.”

 Para Vanessa Sial, é preciso ver o cemitério como um lugar educativo e turístico, além de sua função ritual. “É necessário criar roteiros guiados, exposições, materiais didáticos. A escola precisa entrar no cemitério, com respeito, claro, para que as novas gerações reconheçam esse lugar como parte de sua história.”

Entre o passado que pulsa e o presente que resiste, o Cemitério de Santo Amaro continua sendo um espaço sagrado de despedidas e encontros. Uma cidade dos mortos que ensina, silenciosamente, sobre a vida.