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'O Auto da Compadecida 2' celebra o legado do primeiro para não competir com ele

Selton Mello e Matheus Nachtergaele marejam os olhos mais de uma vez em longa de reencontros que soa como um caprichado especial de Natal

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Toda continuação ou material derivado de clássico gera desconfiança, sobretudo quando a obra-base é um marco da dimensão de O auto da Compadecida. Lançado originalmente em formato de minissérie e rodado em película, nada usual para televisão à época, o filme de 2000 adaptou um dos textos mais célebres da literatura nacional, de Ariano Suassuna, e fez parte de um momento-chave da época da Retomada, tornando-se nos anos subsequentes, como bem descreve Matheus Nachtergaele, o filme de cabeceira de todo brasileiro. Assim, tão natural quanto o interesse em voltar à Taperoá foi a demora de Guel Arraes (agora dividindo a direção com Flávia Lacerda) para encontrar a melhor maneira de revisitar seu maior sucesso com os menores riscos de desapontamento possíveis.
 
Dentro do que se propôs, portanto, para O auto da compadecida 2, em cartaz nos cinemas, a equipe foi majoritariamente exitosa. A decisão de incorporar a passagem de tempo à história é um acerto que se bifurca em outros. De largada, confere legitimidade emocional ao reencontro de João Grilo (Nachtergaele) e Chicó (Selton Mello) com o público e com eles mesmos. Mais até: o salto temporal proporciona aos cineastas uma série de novas possibilidade de encenação, de personagens e contexto, para que não se limitem a uma fidelidade conservadora. 
Em O auto 2, João Grilo retorna à cidade após anos desaparecido e descobre que as histórias narradas por Chicó sobre sua ressurreição o transformaram em uma celebridade da qual até as figuras políticas que disputam a prefeitura querem se aproveitar eleitoralmente. O roteiro assinado por Arraes, Adriana Falcão e João Falcão tem, com esse ponto de partida, um banquete para reproduzir o estilo esperto e veloz de Ariano dentro de uma chave rítmica muito contemporânea. A autoconsciência é central nesse sentido para que o filme se equilibre em um meio termo entre a total liberdade dos criadores e a imitação irrestrita à matriz. 
 
Reconhecendo a impossibilidade de reproduzir, pelo menos em um primeiro momento, o impacto do primeiro, o filme se comporta como um caro e caprichado especial de Natal que reverencia o universo levando-o de volta às suas origens do teatro, com cenários propositalmente artificiais e uma lógica digital de estúdio bastante diferente da estética anterior. Os planos acrobáticos e jogos de luz tem belas sacadas, mas os cortes às vezes não permitem a respiração entre as piadas e acabam comprometendo o traquejo do texto – como se o filme não confiasse na sua força narrativa e precisasse buscar ininterruptamente novos estímulos visuais e sonoros. 
A Rosinha de Virgínia Cavendish, empoderada como nunca, resume bem o espírito ao mesmo tempo respeitoso e artificial que esta sequência esbanja, visto que sua caracterização soa quase uma homenagem contemporânea da atriz à própria personagem. Apesar de igualmente empenhadas, as participações de Fabíola Nascimento, Luís Miranda, Eduardo Sterblitch, Humberto Martins e mesmo Taís Araújo – como uma Compadecida jovem, emotiva e proativa – parecem partes de uma brincadeira leve que compõe os cenários mais como adornos do que como partes de um cânone, e às vezes incham o enredo mais do que propriamente acrescentam a ele.
 
A melhor notícia é que Selton e Matheus não poderiam estar mais à vontade – e emocionados – ao vestirem de novo seus personagens, contracenando e se divertindo individualmente também. É através dos olhos marejados deles que O auto 2 se torna uma celebração que claramente não busca equiparação, mas consegue ainda espaço para a reflexão final que está no coração da obra de Ariano – na qual o homem simples é levado a julgamento por tentar sobreviver. A ressurreição aqui ganha, antes de tudo, cores de festa.