{{channel}}
'O Homem do Norte': Robert Eggers ritualiza o épico viking em filme brutal
Nos últimos anos, Robert Eggers passou de ser considerado um nome promissor para se posicionar entre os grandes autores em atividade hoje. Apenas com seus dois primeiros longas-metragens, os aclamados filmes de horror A bruxa (2016) e O farol (2019), o diretor estadunidense já ocupa o seleto grupo de cineastas que têm não somente uma assinatura facilmente reconhecível, mas também um definido projeto de cinema. Em O homem do norte, que entrou em cartaz no Brasil na última quinta-feira (12), tal projeto se concretiza, desta vez, numa escala (só a escala mesmo) de blockbuster.
Baseando-se no conto dinamarquês que inspirou William Shakespeare na criação da tragédia Hamlet, Eggers, também roteirista, trata do jovem príncipe Amleth (interpretado na infância por Oscar Novak e na maturidade por Alexander Skarsgård), que, em meados do século IX, perto de atingir a maioridade para assumir o trono, tem o pai (Ethan Hawke) assassinado pelo tio (Cleas Bang), que sequestra o reino e a rainha, sua mãe (Nicole Kidman). Após ser ele mesmo marcado de morte, o menino foge para longe, nutrindo ano após ano o desejo de vingança e, disfarçado de escravo numa fazenda para cumprir sua missão, conhece Olga (Anya Taylor-Joy), que se torna na mesma medida cúmplice e paixão.
UM ÉPICO DE AUTOR
Ainda que O homem do norte seja orçado em cerca de 90 milhões de dólares - seis vezes mais do que os orçamentos de seus dois primeiros longas juntos -, o apreço pela precisão histórica da direção de arte, o ritmo solene e deliberado, os flertes com um misticismo ancestral e a agressividade do trabalho sonoro continuam sendo marcas registradas do diretor. Sua obsessão em imprimir peso e autenticidade a cada elemento da cenografia é comparável ao perfeccionismo dos seus planos - econômicos em movimentação, frequentemente amplos e cheios de contraste entre luz e sombra. E, mesmo lidando aqui com uma herança clássica de épico viking, Eggers ritualiza as sequências de modo muito particular, fragmentando o filme em capítulos e fazendo cada cena dispor de um caráter épico que tem como fim a própria construção imagética.
Essa intensidade formal de Eggers pode facilmente ser acusada de histrionismo ou vaidade - sobretudo num projeto cujos desdobramentos do enredo já são mais do que familiares e que, consequentemente, detém no seu virtuosismo técnico o principal chamariz. O maior mérito de O homem do norte, no entanto, não está propriamente no visual pomposo ou na verossimilhança da produção, mas na maneira como o cineasta conserva um aspecto sujo e animalesco numa encenação quase teatral.
Diferente da esmagadora maioria dos filmes de época contemporâneos da indústria, ele não tem interesse em atualizar os dialetos, dinamizar o tom das interpretações ou inserir senso de humor moderno para tornar seu trabalho mais acessível. A violência varia entre brutalmente objetiva e surpreendentemente explícita; os gestos e olhares são carregados em estilização e as sequências pontuais de embate são cruas e realistas, mas o filme nunca perde a ritualização de sua forma. Pelo contrário: se vale desses apetrechos à disposição justamente para intensificar os seus efeitos estilísticos.
Todo o elenco, composto também por participações pontuais de Willem Dafoe e Björk, se entrega a essa ideia de construção de um universo simultaneamente palpável pela sua veracidade histórica e um tanto alucinógeno pelas suas incursões de horror e fantasia - curiosamente mais presentes até em O homem do norte do que nos filmes dos devidos gêneros que Eggers comandou.
O resultado, apesar de sensorialmente poderoso, talvez seja algo impenetrável para a plateia grande que um filme desse porte supostamente deveria abranger, o que só torna mais admirável um cineasta conseguir em seu terceiro longa concretizar de modo tão cristalino um ideal de autor com um gênero cada vez mais raro - e num sistema mais sufocado do que nunca pela interferência criativa dos algoritmos.