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Recifense detalha percurso para criar cultura de verificação em tempos de fake news
A morte de uma mulher no Guarujá, em São Paulo, após uma informação falsa circular apontando ela como responsável pelo sequestro de crianças, foi um dos marcos factuais para a jornalista recifense Alice de Souza mergulhar nos estudos sobre o ecossistema da desinformação. O livro O grande boato, fruto de sua dissertação de mestrado, detalha o percurso da repórter para criar uma cultura de verificação em tempos de fake news. Os exemplares custam R$ 20 e estão disponíveis em e-book na Amazon. A edição é da jornalista Raquel Lima e a capa é assinada pela designer Jaíne Cintra, todas elas ex-integrantes da equipe do Diario de Pernambuco.
"A dona de casa confundida com uma sequestradora de crianças é uma tragédia que me choca até hoje, pois ela foi linchada e depois ficou provado que não tinha nada a ver com os fatos imputados a ela. Acho que as eleições de 2018 também são um marco, pois ali começamos a perceber a desinformação como um problema cotidiano", conta Alice.
"Me abala sempre pensar como nas redes sociais somos movidos pelo discurso da emoção e não pela razão, mesmo depois de tantos exemplos dos riscos implícitos nessa forma de lidar com o conteúdo. E pensar como abrimos mão da nossa capacidade crítica, muitas vezes de forma deliberada, para surfar na onda do momento.”
Pós-graduada em Direitos Humanos e mestre em Indústrias Criativas, Alice foi repórter do Diario por 10 anos e coordenadora editorial no Jornal do Commercio. A trajetória foi permeada pela inquietação de entender o que acontece ao redor e as mudanças na forma como as pessoas consomem e se relacionam com as notícias. Entendeu que era preciso não só praticar o jornalismo, mas estudar a comunicação. “No mestrado, as inquietações cresceram ao passo que eu mergulhava mais nas leituras sobre as rupturas provocadas pela introdução do computador, do celular e da internet nas nossas vidas.
Naquele momento, percebi que muito do que eu já havia lido sobre cultura midiática ajudava a entender parte daquele cenário e do que viria a partir dali”, explica. Ainda no mestrado, a publicação do livro já era uma possibilidade, mas para ser lançado, foi preciso adaptar sobretudo a linguagem, deixando o texto mais fluido, lançando mão de sua experiência enquanto jornalista de redação e de casos de impacto para ilustrar o conteúdo teórico.
A pós-graduação também rendeu duas importantes ferramentas: o Verific.ai e o Confere.ai. A primeira, feita de forma ainda experimental e testada nas eleições de 2018, foi um aplicativo produzido na época do mestrado para entender até que ponto uma ferramenta computacional conseguiria dar resposta binária - se algo é verdadeiro ou falso - para o público.
Dela, surgiu o Confere.ai, um medidor de características de desinformação que diz para as pessoas se um conteúdo tem muitas ou poucas chances de ser enganoso ou falso. Este último foi um dos vencedores do desafio de inovação do Google News Initiative na América Latina e tem embarcado nele o uso de inteligência artificial como parâmetro de avaliação de links e textos noticiosos.
Para Alice, ser jornalista na era das fake news tem sido exaustivo. “É uma profissão que demanda uma entrega grande, um rigor e que, em sua ponta, tem o compromisso social como norte. Porém, quando a própria sociedade se nega ao compromisso coletivo de protegernos uns aos outros, de promover um debate que leve à gestação de novas e melhores ideias, muitas vezes parece que nós jornalistas caminhamos sozinhos e contra a correnteza”, pontua.
Ela ainda destaca o próprio mercado da profissão, que vem passando por reformulações intensas, empurrando os profissionais para situações limite, como fomentador da crise. “É como se estivéssemos no meio de um fogo cruzado de crises simultâneas, tentando apagar todos os incêndios ao mesmo tempo, e ainda sendo atacados como nunca por apenas exercer a profissão”, reflete.
Segundo dados da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), 2020 foi o ano mais violento para os profissionais desde o início da década de 1990. Foram 428 casos de ataques e dois assassinatos, o que representa um aumento de 105,77% em relação a 2019. Apesar da crise, Alice vê o jornalismo cada vez mais necessário. “Desde que feito com compromisso, com suporte e estrutura, é o jornalismo que tem conseguido dar as melhores respostas para a sociedade não ficar refém das desinformações”, conclui.
TRÊS PERGUNTAS - Alice de Souza, jornalista
Qual o preço da verdade?
Precisamos entender que a verdade custa caro e, nem sempre, é um bem interessante. A falta de transparência e o jogo com as informações falsas são também um jogo de interesses e poderes. Há quem se interesse que você consuma conteúdos mentirosos? Há quem se interesse que você não consiga formular hipóteses e questionar padrões? Há quem se interesse que a sociedade não saiba o que acontece nos meandros do poder institucional, dos três poderes oficiais? Trabalhar pela verdade pode significar enfrentar esses poderes e a manutenção de vários privilégios.
Você se inspirou em algum outro projeto para dar vida aos seus?
Sim, acredito que realizar esse tipo de trabalho só foi possível porque há um ecossistema de iniciativas e pesquisadores se debruçando sobre o tema da desinformação. Aqui no Brasil, temos agências e serviços de checagem que fazem um trabalho brilhante, e que inclusive nos apoiaram muito no entendimento das metodologias das checagens, dos desafios e dos processos tecnológicos de verificação. São exemplos o Projeto Comprova, a Aos Fatos, a Agência Lupa, o Estadão Verifica, o Boatos.org, entre outros. Fora isso, há alguns projetos internacionais, como o Latam Chequea, a própria a International Fact-Checking Network (IFCN), além de projetos que trabalham com automatização, como o Radar Aos Fatos e a FátimaBot, no Brasil.
Planeja continuar trabalhando pela implementação de mais ferramentas como essa em outros espaços ou outras funcionalidades?
Sim, acredito que esse é um projeto de continuidade, sobretudo porque pensar tecnologias, formas e processos para lidar com a desinformação tem se mostrado cada vez mais necessário. A pandemia da Covid-19, com sua "desinfodemia", como nomeou a Organização Mundial da Saúde (OMS), é uma prova de como nossas vidas estão marcadas e impactadas neste momento pela desinformação. Logo, pensar a checagem e sobre a checagem deveria ser uma bandeira de todos nós, jornalistas, e ainda mais da sociedade.