{{channel}}
Construção ameaça casarão centenário que abriga ONG na Rua da Aurora
No casarão número 987 da Rua da Aurora, a cineasta e jornalista Sandra Ribeiro viveu sua infância, cresceu e fez surgir o projeto dos seus sonhos. Foi lá que ela ouvia as histórias da sua avó e também foi naquele espaço que ela montou a ONG Aurora Filmes, que capacita jovens de periferia em diversas áreas do audiovisual. Mas sua história com aquele casarão do século 19 é também a trajetória de uma das ruas mais tradicionais do Recife e palco de um antigo debate sobre ocupação da cidade. Construído em 1885, aos poucos a edificação viu suas semelhantes sumirem e todo o bloco se verticalizar em prédios.
Seguindo o caminho pavimentado por seus contemporâneos, o casarão está sendo ameaçado por uma nova construção moderna vizinha. Um espaço que antes era estacionamento dará lugar à futura sede da Associação dos Auditores Externos do Tribunal de Contas do Estado. Segundo laudo de um engenheiro convocado por Sandra, a construção pode afetar a estrutura da sede da Aurora Filmes, casa de um projeto social de cinema e um dos últimos casarões da Aurora.
Oficialmente criada em 2006, a Aurora Filmes é uma ONG que em seu nome leva uma homenagem à primeira produtora de cinema de pernambuco, a Aurora Films de Ary Severo. Até 2016 a ONG era mantida por incentivos de editais e projetos do governo do estado e prefeitura. Mas de outras formas, o projeto começou muitos anos antes, quando Júlia de Carvalho, avó de Sandra Ribeiro, lhe "flechou com a criatividade". Ao entrar na faculdade de jornalismo, viu no audiovisual uma forma de exercitar aquela criatividade que foi apresentada na infância. "Eu fui criada nessa casa com a minha avó. Ela contava muitas histórias e dizia: ‘os holandeses esconderam um tesouro aqui’. E naquela parte que é um estúdio, antes era um quintal que a gente ficava cavando o tesouro", relembra a cineasta.
Antes da abertura da graduação de cinema da UFPE, os cursos que havia no Recife eram isolados, de direção, filmagem ou roteiro. Ainda nessa época, a ONG ofertava a jovens de periferia um curso que ia da história do cinema à direção. "Por duas décadas a ONG esteve aqui no casarão, criada por um grupo de jornalistas que tinha por preocupação a juventude. O que os jornalistas ligados ao audiovisual podiam fazer pela população e pelos jovens?", questionava. Foram cerca de 900 alunos, que produziram cerca de 30 curtas ao longo de 14 anos. As atividades estão paralisadas por conta da pandemia, do roubo de equipamentos e das próprias movimentações da obra ao lado dos estúdios de gravação.
Hoje, Sandra e a edificação vivem momentos de apreensão com o novo vizinho. Laudo assinado no dia 24 de setembro pelo engenheiro civil Stênio de Coura Cuentro diz que a nova obra pode comprometer futuramente as estruturas daquele que é um dos últimos casarões da região. Entre as conclusões está a falta de informações sobre as estruturas do novo projeto, a ausência de dispositivos de proteção às fundações do casarão e a falta de equipamentos adequados para os trabalhadores. Além de modificar o acesso ao vento e à luz, fechando também o mural lateral feito por Galo de Souza, a obra afeta as dinâmicas de outras 15 famílias da Travessa do Costa, que fica aos fundos da construção.
A obra começou em julho, em momento de quarentena. Porém, toda situação remete aos dia 21 de dezembro de 2015, quando terreno foi cedido ao Tribunal de Contas do Estado pela Assembleia Legislativa. A Associação dos Auditores Externos do TCE decidiu utilizar o terreno para construir sua própria sede com "recursos próprios". Já em 2017, Sandra entrou para tombamento do imóvel, mas o pedido foi negado.
Na intenção de conseguir o embargo, Sandra tenta mobilizar a sociedade a partir do engajamento com figuras públicas, como o diretor Kleber Mendonça Filho e o vereador Ivan Moraes, em uma articulação através de uma petição popular. O documento digital se chama Salvem a Aurora Filmes e está disponível no site petiçaopopular.com.br.
Tradicional x moderno
Margeando as águas do Rio Capibaribe e conectando bairros como Boa Vista e Santo Amaro, a Rua da Aurora foi berço de profundas modificações urbanas. Em 1806, foi aterrada e criou terreno para, no século XIX, iniciar a ocupação muito comercial e industrial. Nos anos 1950, foi palco de disputas durante a construção do Edifício Capibaribe, um dos primeiros grandes edifícios residenciais da cidade do Recife. Em artigos publicados na época, o jornalista Mário Melo lamentava a verticalização, enquanto grupos comemoravam a suposta modernização.
Nas propagandas, que podem ser vistas nos arquivos do Diario na Hemeroteca Digital, havia a constante exaltação da Rua da Aurora como um ponto permanentemente valorizado para investimentos imobiliários. Em um dos textos, que anunciava apartamentos no Edf. Capibaribe, a propaganda diz: "Pense no seu valor excepcional não muito distante, quando a Rua da Aurora estiver cheia de arranha-céus".
Para Marcela Lins, artista e mestre em comunicação social pelo PPGCom da UFPE, que pesquisou o mercado imobiliário e as mudanças urbanas no Recife a partir da publicidade, a disputa entre tradição e modernidade são imbricadas nos discursos de urbanização recifense. Em movimentos mais recentes, a vinda da Rede Globo, a construção da Assembleia de Deus de Pernambuco e os quatro espigões do bloco do casarão já modificaram bastante a paisagem da Aurora.
"Acho que a paisagem é parte constitutiva das nossas subjetividades. E, nesse sentido, a memória de cidade é algo que nos constitui... não só enquanto sujeitos, mas como coletividade também. Nesse sentido, as políticas de manutenção de preservação de memória são muito importantes. É complexo, que muitas vezes, o que é entendido hegemonicamente por patrimônio não abarca a diversidade das formas de vida e de ser que constituem o espaço e a vida urbana", pontua Marcela.
Respostas
Por dois dias seguidos a reportagem tentou contato com a Associação dos Auditores Externos do Tribunal de Contas do Estado e a Rangel Moreira Arquitetura, responsável pelo projeto do novo prédio, mas não recebeu respostas. Em nota, enviada após a publicação da matéria, a Associação nega informações e questiona a veracidade do laudo.
1 - Procuramos a proprietária da casa vizinha diversas vezes, no intuito de oferecer tranquilidade sobre a obra e agir sempre de forma transparente e cordial, mas a recíproca nunca foi verdadeira. Mesmo sem ter acesso à edificação, é visível e facilmente constatável que houve alterações significativas não previstas legalmente na fachada lateral adjacente ao terreno cedido à Associação, com abertura de vãos, janelas e portas, além da instalação de caixas e aparelhos de ar-condicionado A fachada lateral é, portanto, completamente IRREGULAR. São "puxados" diversos e total descaracterização do imóvel ao longo dos anos, além de cobertura em telha de amianto. Recebemos denúncias de que a tal casa passa por profunda depauperação interna. O imóvel, inclusive, ocupa parte do terreno cedido à Associação, estando passível de ação de reintegração de posse da parte do terreno ocupada de forma irregular. É por esses motivos que a empresária não quer nos receber em nenhuma hora.
2 - Nunca recebemos nenhum laudo por parte da empresa vizinha. Pela imprensa, tivemos conhecimento de um material produzido unilateralmente pelo Sr. Stênio Cuentro, o que não se configura jamais como um laudo, já que se trata de 14 linhas opinativas, com achismos, sem qualquer fundamentação técnica e sem a exigida Anotação de Responsabilidade Técnica (ART). Um laudo de credibilidade precisa necessariamente conter informações como: características da edificação, cálculos precisos e documentação fotográfica, como o que foi feito pelo nosso engenheiro calculista Elígio Medeiros e está à disposição da imprensa. A previsão do término é de seis a oito meses.
3 - Reiteramos publicamente o que já fora exposto inúmeras vezes: é recomendável e uma vistoria conjunta no imóvel, para que se possa verificar o estado atual de conservação e também para tranquilizar a todos sobre a segurança da obra. Infelizmente, mesmo com inúmeras solicitações, isso nunca nos foi permitido, o que nos leva a ter uma percepção de uma possível má-fé de quem espalha informações não verdadeiras sobre esta instituição e seus integrantes, sem fazer nada para dissipar dúvidas sobre o projeto.
4 - A informação de que o Sindicontas representa a maioria de nossa categoria NÃO procede. A entidade que representa mais de 80% dos auditores do TCE/PE é o Sindicato dos Auditores do Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco - Auditores Sindical, instituição legalmente constituída e pautada pela ética e pela moral em todas as suas ações. Da Auditores Sindical fazem parte os seguintes cargos: Auditor de Controle Externo do Tribunal de Contas de Pernambuco, área de auditoria de contas públicas, auditoria de contas públicas de saúde, auditoria de obras públicas e auditoria de tecnologia da informação.