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Quando o Super Bowl Halftime Show vai além do entretenimento

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Foto: Matt Slocum/AFP, Kevin Winter AFP e CBS/Reprodução
Beyoncé (2016), Shakira e Jennifer Lopez (2020) e Janet Jackson e Justin Timberlake (2004).


A década de 2010 foi marcante para a música latina. O consumo da música via streaming provocou um movimento inédito nas fronteiras do mercado fonográfico, tornando o reggaeton um fenômeno de popularidade nos Estados Unidos, ultrapassando até o tradicional country, de acordo com pesquisa da Buzz Angle Music em 2018. Porém, quando os grandes selos e a MTV ainda ditavam as tendências, Shakira e Jennifer Lopez driblaram o sistema e exaltaram o “latino” na terra dos yankees. No último domingo (2), a apresentação das cantoras no Super Bowl Halftime Show, exibido durante a final do campeonato de futebol americano da NFL, veio como uma legitimação desse feito. As pioneiras brilharam no maior evento desportivo e de maior audiência televisiva do país.

Natural da Colômbia, Shakira abriu o show em diálogo com a sua singular trajetória artística, que mescla tradições de Barranquilla e de sua descendência árabe, como a hipnotizante dança do ventre. Shakira lançou quatro discos em espanhol até finalmente conseguir adesão nos EUA com Laundry service (2001), álbum de onde saiu o grande hit Whenever wherever. Além dessa canção, o repertório foi contemplado por She wolf, Empire, Ojos asi, I like it e Chantaje (ambas com Bad Bunny, de reggaeton e latin trap) e o fenômeno Hips don’t lie.

Jennifer Lopez, por sua vez, foi mais enérgica com sucessos como Get right, Waiting for tonight e On the floor. Natural de Porto Rico, território não incorporado dos EUA, J.Lo trouxe uma visão mais “escrachada” e pop do que é ser latino. O ápice narrativo foi durante um cover de Born in the U.S.A, clássico ufanista do rockeiro Bruce Springsteen. A cantora vestiu um casaco estampado com a bandeira de Porto Rico, subvertendo tradições do nacionalismo americano. Lopez e Shakira encerraram com Waka waka, hit da Copa do Mundo de 2010 que prega união global. 


Logo quando anunciado, o show da dupla já fazia a esfera pública discutir como a performance era importante para a autoestima da população latina nos EUA e, de quebra, deixar um recado para os movimentos de cunho xenofóbico no país. Na prática, isso foi possível, pois os espetáculos midiáticos detêm um grande alcance no mundo capitalista pós-moderno. O conceito de “sociedade do espetáculo”, desenvolvido pelo teórico francês Guy Debord nos anos 1960, ainda circula na internet e no meio acadêmico por ponderar como a civilização é sensível a esses acontecimentos, sejam culturais ou não. Para Debord, o espetáculo “unifica e explica uma grande diversidade de fenômenos aparentes”.

ACIONAMENTO
Segundo Suzana Mateus, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFPE, é possível verificar acionamentos políticos de apresentações musicais, sobretudo levando em consideração o local onde elas ocorrem. “Quando performances pautam temáticas políticas em um lugar como o Super Bowl, que é praticamente um feriado nacional nos EUA, é possível observar como essa iniciativa, ainda que não exista com o único propósito de discutir política, é passível de atingir um público muito grande e de levar a esse público discussões que podem ser elucidativas de questões sociais profundas.”

O Halftime do Super Bowl começou a existir nos anos 1960 com a participação de bandas marciais de diferentes estados. A tradição mudou quando Michael Jackson apresentou um medley de sucessos em 1993. Seguiram Diana Ross (1996), Boyz II Men (1998), Prince (2007) e Black Eyed Peas (2011), além de times que reuniam diversos gêneros - Phil Collins, Enrique Iglesias e Christina Aguilera (2000) ou Aerosmith, 'N Sync, Britney Spears e Mary J. Blige (2001).
 
Controvérsias surgem em meio à festa


A primeira vez que o intervalo musical se tornou alvo de discussões foi em 2004, quando Justin Timberlake expôs, acidentalmente, o seio de Janet Jackson no show. O incidente de meio segundo foi amplamente discutido com uma repressão conservadora imediata. O debate generalizado afetou em cheio a carreira da cantora. O Halftime voltou a ser alvo de controvérsia em 2012, quando Madonna apresentou um show de ares faraônicos e teve os sinais da idade - na época, 54 anos - como alvo. Em 2017, Lady Gaga foi criticada por grande parte dos fãs por, em meio ao governo de Donald Trump, endossar uma narrativa nacionalista e apolítica.

Em 2016, em show com Bruno Mars e Coldplay, foi a vez de Beyoncé provocar um escândalo. “Sua performance pautou questões em torno dos conflitos raciais nos EUA”, explica Suzana Mateus, que tem mestrado intitulado Narrativas do feminino nas performances de Beyoncé (2018). “Ela e as dançarinas usavam roupas que lembravam os Panteras Negras, organização revolucionária que lutava contra o racismo na década de 1960, e dançavam com gestos que encenavam raiva. Combinados com a música Formation, essas características pareciam propor um levante, a formação de uma resistência diante dos vários casos de jovens negros mortos pela polícia que vinham acontecendo naqueles últimos anos”, diz a pesquisadora.



"Isso tudo ocorreu no ano da eleição de Trump, que já tinha feito vários ataques a grupos minoritários e trazia consigo, inclusive como proposta de governo, a possibilidade de restauração de um imaginário norte-americano conservador, onde as minorias não tinham tanto espaço como têm hoje", continua Suzana. "A repercussão foi tão grande que muitos policiais chegaram a dizer que não iriam mais fazer a segurança dos shows da cantora e a hashtag #BoycottBeyoncé foi criada com intuito de esvaziar os shows dela.” Para a pesquisadora, essa performance é um bom exemplo de como os acionamentos políticos do show podem se sobrepor ao entretenimento e ganhar outras dimensões públicas.

Em relação à noite de Shakira e J.Lo, Suzana endossa a visão de homenagem à música feita por latinos. “A música latina hoje se consagra como o que há de mais presente na música pop, mas possui uma história longa, da qual essas duas artistas fazem parte. Elas foram pioneiras na expansão dessa musicalidade para o mundo e trouxeram, mesmo que indiretamente, a questão dos povos latinos nos EUA, que também tem sido uma grande discussão política dos nossos tempos."
 
Halftimes
 
Heal the world (1993)
O medley de Michael Jackson foi um dos eventos mais aclamados do ano e ainda figura entre os eventos mais assistidos na história da TV americana.


40º Aniversário da Motown (1998)
Ode à primeira gravadora de música pop negra com  Boyz II Men, Martha Reeves,  Smokey Robinson, Queen  Latifah e The Temptations.


U2 (2002)
Tributo ao 11 de Setembro. A banda foi escolhida por conta do álbum All that you can’t leave behind, referência de homenagem às vítimas do atentado.
 

Rock The Voice (2004)
Noite com Janet Jackson, P. Diddy, Nelly, Kid Rock e Justin Timberlake. O peito de Janet causou uma grande polêmica e prejudicou sua carreira.
 

Cleopatra (2012)
Madonna, LMFAO, Cirque du Soleil, Nicki Minaj, M.I.A., Cee Lo Green e bandas marciais. A rainha do pop foi alvo de críticas pelos sinais da idade, 54.
 

Beyoncé (2016)
Coldplay, Beyoncé e Bruno Mars dividiram palco. A cantora causou furor do público conservador por sugerir um “levante negro”.
 

Lady Gaga (2017)
Querida pelas minorias, ela foi criticada por começar performance com hino dos EUA e não desaprovar Donald Trump no show.