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Pastoris religiosos e profanos tentam resistir no ciclo natalino do Recife
Velhos de pastoril trazem a malícia das piadas de duplo sentido, mas sofrem com a falta de renovação; já o pastoril religioso ganhou espaço nos últimos anos
A chegada do período natalino significa muito mais do que a perspectiva de uma reunião familiar para quem é apaixonado pelos folguedos populares nordestinos. Esta é a época, por excelência, na qual os pastoris começavam a ocupar os espaços públicos, seja louvando o nascimento de Jesus Cristo, no caso dos pastoris religiosos, seja subvertendo a tradição para castigar os costumes terrenos, como é o caso dos pastoris profanos. No caso dos véios do pastoril, as suas habilidades são múltiplas: cantar, dançar, compor e contar piadas, como palhaços populares talhados para fazer críticas libertinas aos costumes. Esses sátiros do povo já foram bem mais comuns na paisagem humana do Nordeste, mas ainda há quem tome coragem e resista na picardia.
Antônio Coutinho, de 81 anos, nascido em Bezerros, no Agreste, tem voz mansa e gestos de cavalheiro que podem enganar quem não o conhece como o Velho Xaveco, um dos poucos ainda em atividade no Recife. Ferroviário aposentado e ex-forrozeiro, se vestiu definitivamente com o personagem em 1987 e se apresenta onde é chamado, seja por prefeituras ou particulares da capital e interior. O dom para a poesia, especialmente sonetos, o transformou em compositor e a experiência como percussionista na infância o ajudou a fazer uma transição mais suave para um universo mais picante, com a cantoria e as piadas de duplo sentido próprias desses personagens populares. Em sua carreira, lançou 2 LPs: Eu já fui bom nisso (1991) e Pacu pequeno, pacu grande (1995).
Nos últimos anos, Xaveco se apresenta com 5 pastoras-bailarinas e duas backing vocals, além de seis músicos, com violão, percussão, zabumba, saxofone e Nido do acordeon. Suas “jornadas”, ou músicas, copiam parcialmente a estrutura do pastoril religioso, mas diferem muito no conteúdo, com trocadilhos e lorotas, além de referência à cobra, símbolo fálico usado como bengala e tratado por ele como “amuleto do véio”. “Um velho de pastoril precisa ser compositor, poeta, produtor, diretor e cantor, mas vale a pena, porque as pessoas gostam de rir. Os temas são atualizados, mas a disposição é a mesma. Uma das minhas canções é O velhinho quer tomar viagra”, afirma.
Ainda assim, o artista popular enumera as dificuldades e diz que elas quase tiram seu gosto para a brincadeira. “A invasão de outras músicas, como o funk e o sertanejo, deixaram a cultura popular de lado. Não se ouve mais pastoril no rádio ou na TV. Chacrinha, por exemplo, conhecia e copiou a estrutura do pastoril profano. Suas pastoras eram as chacretes. Até 2007, eu tinha uma atividade intensa no Recife e na Zona da Mata o ano inteiro, em festas de santos. A violência e a crise econômica fizeram as viagens minguarem. Estou até rejeitando alguns trabalhos à noite por conta da bandidagem, pois é melhor nos apresentarmos a partir das 22h, por conta das piadas”.
Outro sintoma dos “novos tempos”, para o Velho Xaveco, é o tratamento dispensado à mulher e aos homossexuais nas canções, nas danças e no figurino. Só para lembrar, as pastoras vestem trajes muito mais sumários e são bem mais libidinosas do que na versão religiosa do pastoril. “Não denigro o sexo feminino nas minhas piadas. Minha tendência para escrever é calcada na cidadania. Deixei de fazer brincadeiras e cantar músicas sobre gays. Procuro exercer a aceitação”.
Cria e apadrinhado do Velho Xaveco, Silas Araújo, de 41 anos, é um caso raro: tornou-se, há apenas seis anos, o Véi Lumbrigueta. A ligação entre ambos começou de forma inusitada. Ascensorista em um prédio na Boa Vista, o brincante reconheceu Antônio Coutinho dentro do elevador onde trabalha e ambos começaram a conversar. A partir daí, Silas, que já era ator e palhaço na Bomba do Hemetério, onde vive desde a infância, começou a compor e montou seu grupo de pastoras. Começou com a esposa, a prima e uma amiga e, hoje, são cinco mulheres. Seu acompanhamento musical é feito pela Orquestra Lumbriguetofônica, com quatro músicos, com um repertório de cirandas, cocos e marchinhas. “Sou despachado, mas, ao mesmo tempo, é preciso prestar atenção. Não dá para ter muita picardia quando tem criança vendo. Só conto piadas mais fortes depois das 22h e sem crianças no ambiente”.
Um dos diferenciais do Véi Lumbigueta está em seus adereços. Em vez de uma cobra, ele escolheu uma macaca para acompanhá-lo. O Velho Xaveco e o Velho Faceta são suas maiores referências e Silas misturou essas influências à métrica do cordel e aos causos sertanejos. “O pastoril é especial porque traz alegria sem precisar de uma grande produção. Para mim, ele vai durar para sempre, mas, infelizmente, sem o valor merecido. Só como véio, já não me apresento há dois meses. A falta de renovação existe e é triste, mas tem gente boa por aí sem condições de divulgar o próprio trabalho. As pessoas gostam de palhaços e precisam sorrir. Acredito que as pessoas brincam de pastoril até mesmo sem saber, assim como eu fazia. Isso não é apenas uma moda, é muito mais profundo”.
Outro observador atento da situação dos pastoris é o ator, palhaço e músico Walmir Chagas, artista com 40 anos de carreira e criador do Véio Mangaba, personagem icônico das artes cênicas pernambucanas. Esta recriação inspirada na tradição popular já vai completar 20 anos em 2017 e ajudou a aproximar a classe média desse tipo de manifestação cultural. Sua experiência o deixa em posição confortável para opinar sobre as condições de sobrevivência desse folguedo profano. "De pastoril autêntico na capital, só existia o Velho Dengoso, de Chão de Estrelas. Essa posição pode parecer radical, mas não quero desvalorizar o trabalho de ninguém. A falta de locais e de condições para se apresentar desestimula os artistas. Com o tempo, acaba. Meu pai perguntava: ‘Recife é pobre por que não tem dinheiro, ou não tem dinheiro porque é pobre?’. Uma coisa alimenta a outra. Você não se dedica porque não há mercado. Poderia ser criada uma escola para ensinar a arte do pastoril".
A importância de manter a existência do pastoril, segundo Walmir, reside em sua facilidade em falar a língua do povo e alcançar, dessa forma, camadas impossíveis de outra forma. “Eu entendo o começo, meio e fim do pastoril como uma crítica social. Você fala, por exemplo, sobre uma besteira que o politico fez. O meu mesmo é muito assim. A arte, a educação e a informação estão de braços dados. A gente tem de reportar as coisas boas e ruins. As pessoas ficam rindo da vida dura que a gente leva”.
MAIS VELHOS DE PASTORIL
%2b VELHO FACETA
O legado do Velho Faceta (1925-1986), nascido, segundo alguns pesquisadores, como Constantino Leite Moisakis em Carpina, na Mata Norte, é reverenciado até hoje pelos admiradores da cultura popular e pelos velhos de pastoril profano ainda em atividade. O brincante se apresentava no interior após as 20h e sua apresentação varava a madrugada, sempre com suas pastoras, canções variadas e piadas picantes. Seu pastoril também era conhecido como Rosa Branca. Em alguns casos, ele chegava a inventar xingamentos para quem pagava para difamar os inimigos durante as apresentações. O artista popular chegou a gravar três álbuns no fim dos anos 70 e, com isso, difundir seu trabalho para outros públicos.
Ao defender o formato mais tradicional do pastoril profano, o Velho Faceta se tornou modelo para os “véios” seguintes e também foi usado como referência na cultura pop. Um exemplo emblemático é o do grupo Os Trapalhões, que fez uma versão da música O casamento da filha do Velho Faceta, com o nome Papai, eu quero me casar. Chico Science e Nação Zumbi também prestaram homenagem ao Velho Faceta ao usar um sample da música Boa noite do Velho Faceta no início do clássico A cidade, no álbum Da lama ao caos. Chacrinha também gravou duas músicas compostas por ele: Bacurinha e É mais embaixo.
O Velho Faceta também teve sua atividade reverenciada pelo teatrólogo e estudioso da cultura popular Hermilo Borba Filho, que teve um pequeno texto de sua autoria, escrito em 11 de janeiro de 1973, publicado na contracapa do primeiro disco do brincante. “Já que não podemos salvar, como pessoas humanas, estes músicos, estes coreógrafos, estes bailarinos, estes atores, estes cantores, estes poetas, pelo menos tentemos salvar sua arte, dentro de roteiros honestos. Uma coisa esquisita vai acontecer: o espetáculo morre mas a música e os versos viverão. Isso vai acontecer com o Bumba, o Mamulengo, o Pastoril, o Fandango, o côco, o Reisado, a Chegança, a Taieira, o Bambelô, a Ciranda, o Maracatu, os Caboclinhos e a Cavalhada”.
%2b VELHO DENGOSO
Um dos animadores populares mais conhecidos da comunidade de Chão de Estrelas, no Recife, José Justino da Silva, o Velho Dengoso, é um dos representantes do pastoril profano mais emblemáticos do Recife. Sua trajetória ilustra o surgimento dos mestres de pastoril clássicos: sua atividade começou no Pastoril do Morcego, no Bairro de Peixinhos, quando tinha 13 anos. Suas habilidades múltiplas foram se aperfeiçoando ao longo das décadas como cantor, mamulengueiro, coquista, cirandeiro, compositor e também animador de boi. Atualmente, o brincante tem 63 anos.
Mesmo sem querer, a trajetória do Velho Dengoso ilustra a situação do pastoril profano em Pernambuco. Atualmente, o “véio” deu uma pausa em sua rotina de apresentações por problemas de saúde e, procurado pela reportagem, não quis falar sobre sua atividade. Quando estava em atividade, o Velho Dengoso foi homenageado, em 2006, pelo Festival de Teatro de Rua do Recife, e gravou um DVD em 2013.
%2bTONHETA
O multiartista pernambucano Antonio Nóbrega é um dos vários artistas que foram influenciados pelo Velho Faceta. Nos anos 90, ele criou o seu palhaço popular, Tonheta, a partir de imitações feitas do decano do pastoril, como anotou em seu site oficial. “Esse Toinho que aqui vos escreve, tinha o hábito de frequentar as apresentações do Pastoril do Velho Faceta, realizadas pelo verão no Janga. Foi esse Velho Faceta - segundo uns, Constantino Leite Moisakis e segundo outros, Jones Francisco da Silva - que durante vários anos acompanhei em andanças e apresentações”.
ORIGEM DO PASTORIL
Os autos de Natal portugueses, com a representação do nascimento do Menino Jesus, remontam à Idade Média, quando as cidades e aldeias se mobilizavam para contar essa história com parte importante de sua população. A chegada dos pastoris ao Brasil obedece ao sentimento religioso da antiga metrópole colonial. Em Pernambuco, por exemplo, a manifestação cultural chegou cedo, como aponta a pesquisadora de cultura popular Maria Alice Amorim. “O pastoril traz vários elementos do Auto do Presépio, teatro popular português. Conforme escreveu Pereira da Costa, registros dão conta da existência de pastoril entre nós desde os primórdios da colonização portuguesa, datando do final do século 16 um registro no Convento Franciscano de Olinda”. Os estados de Alagoas, Paraíba e Rio Grande do Norte também têm representantes do folguedo.
As marchas, loas e cantigas, chamadas de jornadas, em homenagem ao Menino Jesus e à chegada dos três Reis Magos tinham fins de catequese e são cantadas por pastorinhas, originalmente crianças e adolescentes, divididas nos cordões azul e encarnado. Muitas vezes, são encenados no fim da tarde ou início da noite, na frente de igrejas ou em escolas. A subversão desses traços é que compõe o pastoril profano, que tem origem controversa, apontada por alguns pesquisadores como uma tradição bem mais recente, do século 19.
As divisões entre ambos e a atração exercida pelo pastoril profano, que se reveste de um papel de crítica aos costumes sociais, religiosos e políticos também é abordada pela pesquisadora. “O pastoril sagrado apresenta fragmentos de cantos e entrechos dramáticos desse auto popular medieval, de caráter religioso, e a nossa versão bem abrasileirada, picante, irreverente do pastoril é chamada de profana exatamente por se tratar de uma paródia galhofeira daquela festa bem-comportada e com fins religiosos bem explícitos. A galhofa fica por conta do velho do pastoril, safado e escrachado, que comanda a Diana e as pastoras dos dois cordões - o azul e o encarnado - com piadas e cantigas de duplo sentido, mais a dança lasciva das pastoras, que não são crianças nem adolescentes e muito menos têm ar angelical".
PASTORIS RELIGIOSOS
Enquanto o pastoril profano encontra dificuldades para encontrar artistas dispostos a seguir essa tradição, o pastoril religioso também está imerso em uma realidade de esforço para colocar as pastoras na rua, mas a situação é um pouco diferente. Compostos por crianças, adolescentes, mulheres adultas e até idosas que admiram a brincadeira natalina ou participaram de jornadas no passado, os grupos ainda resistem em escolas, igrejas e bairros ou comunidades dos subúrbios do Recife e da Região Metropolitana.
Junto com grupos mais tradicionais, como o Rosa Mística, fundado há 59 anos e homenageado no Ciclo Natalino deste ano da Prefeitura do Recife, há agrupamentos mais recentes, como o Pastoril Giselly Andrade, com 16 anos de existência. A fundadora, Ana Farias, identifica uma tendência de crescimento, apesar dos poucos recursos com os quais os integrantes de cada agrupamento vivem, na maioria das vezes. "O pastoril religioso subiu nos últimos anos. Mulheres adultas e senhoras começaram a participar mais. Estão surgindo cada vez mais grupos de terceira idade e isso se reflete no folguedo. Dona Lourdes do Nascimento, do Rosa Mística, junta um dinheirinho todos os meses para colocar o pastoril na rua. É preciso ter muito amor para isso".
A atuação de Ana no segmento começou como um desejo pessoal pelo gosto pela cultura popular, passado para a filha, homenageada com o nome do pastoril criado por ela. Aos poucos, os preparativos envolvendo a realização das apresentações natalinas se tornaram profissão. A produtora, atualmente, representa nada menos que 25 grupos de pastoril do Recife e da Região Metropolitana. “Quando era criança, dancei pastoril com papel crepom. Eu era a contramestra e a mestra rasgou minha roupa. Isso me marcou. Na adolescência, minha mãe nao me deixava mais dançar por preconceito, porque as apresentações eram na rua. Ao ver minha filha completar 13 anos, decidi fazer um pastoril para ela e a pesquisar. Eu não trabalhava na área, mas montei uma produtora para agilizar as apresentações e hoje trabalho com o segmento cultural durante o ano inteiro”.
Embora boa parte dos pastoris religiosos tenha músicas de domínio público, cuja origem se perde no tempo, o Pastoril Giselly Andrade também investiu em composições próprias e segue boa parte do roteiro clássico das apresentações religiosas. “As pastoras vão a Belém enviadas pela Estrela Guia. Elas encontram a borboleta, a camponesa, o pastor das ovelhas, depois vão para Belém, interagem com outros personagens, como a cigana e, por fim, chegam até Jesus. Meu grupo é formado por várias pessoas das mesmas famílias. Uma sobrinha puxa uma irmã, e por aí vai”. Até agora, o coletivo capitaneado por Ana lançou dois CDs e um DVD. Sobre as diferenças entre o pastoril religioso e sua versão profana, a produtora contemporiza. “Amo os dois, morro de rir com as piadas”.