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Cada vez mais em evidência, vilões roubam dos heróis o protagonismo das histórias
Embora não seja recente, fenômeno se tornou bem mais recorrente nos quadrinhos, no cinema e até na literatura

Para sugerir a maleabilidade do caráter de um interlocutor ao sabor das ocasiões, o idioma inglês possui uma expressão curiosa: “Jekyll and Hyde”. A origem do termo remete a um dos grandes clássicos da literatura ocidental, escrito pelo escocês Robert Louis Stevenson há 130 anos, e publicado no Brasil sob o título O médico e o monstro. A apropriação linguística traduz a interpretação recorrente da alegoria proposta pelo romance – o bem e o mal está presente em cada um de nós. Se a obra-prima de Stevenson se embrenha em investigar as entranhas da alma e a dualidade natural dos indivíduos, uma releitura contemporânea do romance – Hyde (Record, R$ 45), de Daniel Levine – isola o “monstro” da história para dissecar suas múltiplas nuances. Na obra, o personagem não é bom nem ruim. Apenas complexo, como é de praxe entre as pessoas.
A abordagem humanista do thriller norte-americano é bastante sintomática e dá pistas sobre a produção cultural dos nossos tempos, quando os vilões deixam o posto de meros antagonistas para assumirem, cada vez mais, um festejado protagonismo. Para o coordenador do curso de letras da Faculdade de Olinda, Neilton Limeira, mestre em teoria literária, a complexidade psicológica dos vilões explica o quanto eles são objeto de análise, hoje, em detrimento dos “bonzinhos e corretos”.
Na mudança de panorama, as vicissitudes dos humanos sem caráter definido são questionadas, assim como suas escolhas. Na produção literária local, ele destaca o quanto as personagens femininas dos contos de Ronaldo Correia de Brito têm capacidade de matar e, mesmo assim, não podem ser julgadas negativamente, pois estão associadas a contextos específicos. Algo semelhante se dá nas obras mais sombrias de Raimundo Carrero, frisa o professor. Para Limeira, embora sejam cometidos crimes, a figura do vilão é dissipada. “Não dá para definir se os personagens são bons ou maus, porque ele joga essa estratégia de deixar o leitor ‘se virar’. Não sei se conscientemente”.
A supremacia do “lado negro da força” tem alcance ainda maior quando são avaliados setores mais pop, como o universo dos quadrinhos e as incontáveis adaptações cinematográficas. Para um dos autores de HQ mais premiados da atualidade, o paulistano Fábio Moon, apesar de protagonistas anti-heróis existirem desde sempre, desde a década de 1980 os vilões embarcaram em uma crescente de visibilidade. “Depois do Watchmen, o herói chama mais atenção quando é aquele cara que faz o que é politicamente incorreto, aquele herói por motivos duvidosos. Isso trouxe protagonismo para o vilão. Por ele não se importar com o bem das pessoas e sim com benefícios particulares, torna-se um ótimo personagem para carregar uma história”, opina.
Na graphic novel mais recente, Dois irmãos, publicada por ele em parceria com o irmão gêmeo Gabriel Bá e adaptada do romance de Milton Hatoum, há certa diluição da vilania nas páginas. “Uma das grandes tensões é a dúvida do leitor a respeito sobre quem é o gêmeo bom e o gêmeo ruim. Se é o vagabundo que aproveita a vida ou o irmão calculista que tem raiva do outro por ele ter roubado sua mulher quando ambos eram crianças. Existe essa tensão. Mas, às vezes, o vilão é somente aquele que chama mais atenção”.
Impressão semelhante tem o quadrinista recifense Milton Estevam, ilustrador de personagens como o Super-Homem para grandes editoras estrangeiras. Na opinião dele, além de animações mais voltadas para o público infanto-juvenil, como Malévola e Meu malvado favorito, os vilões são alvo não somente de elogios por parte dos fãs, mas provocam frenesi nos cinemas. Como exemplo, cita o Coringa interpretado por Heath Leadger em O cavaleiro das trevas (2008) e Esquadrão suicida, adaptação de HQ formada somente por vilões, com estreia nos cinemas prevista para agosto.
“O bad boy está muito mais em voga. Basta ver o sucesso do anti-herói de Deadpool. Isso existe desde a época em que Wolverine apareceu também como um anti-herói que não seguia padrões morais e, por isso, ganhou mais visibilidade. O fã de HQ prefere a quebra do convencional, gosta mais do Batman do que bons moços, como Capitão América e Super-Homem”.
DUAS PERGUNTAS >> Wellington Srbek, quadrinista, historiador especializado em HQs
Não vem de agora. Desde a segunda metade dos anos 1980, os personagens passaram a se tornar cada vez mais violentos, algo que colocou Wolverine em primeiro plano, em detrimento do Homem-Aranha e do Super-Homem, por exemplo. Essa violência transformou vilões em heróis. É o caso do Justiceiro, antigo vilão do Homem-Aranha, depois alçado à condição de herói, a ponto de ganhar filme.
Quando coadjuvantes, os vilões têm tanta importância?
Nos anos 1960, quando você tinha seriados como o do Batman, com atores incríveis interpretando o Pinguim, o Charada e demais vilões, esses personagens tinham tanta importância quanto Batman e Robin. É preciso lembrar que Batman sempre foi importante por causa da galeria devilões. Claro que não se compara com a realidade dos últimos 20, 30 anos, com a cultura de massa. Não tem nada a ver com o Coringa psicótico do Batman de 2008, que teve proeminência incrível. A adaptação do Esquadrão suicida é resultado daquilo.