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Um ano de saudade e batalha por justiça

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No dia 2 de junho de 2020, exatamente um ano atrás, todo o país se comoveu em meio a espanto, tristeza e choque após as primeiras notícias sobre uma criança morta após uma queda do 9º andar do Edifício Pier Duarte Coelho, edifício de luxo próximo ao Cais de Santa Rita. 


A queda e morte do menino Miguel Otávio Santana da Silva, que tinha apenas cinco anos, aconteceu depois que a criança foi deixada sozinha no elevador do edifício por Sari Corte Real, que era primeira dama do município pernambucano de Tamandaré, foi acusada e responde processo por negligência com resultado morte por deixar Miguel, que estava no apartamento e queria procurar sua mãe, Mirtes Renata, que trabalhava como empregada doméstica para Sari e seu marido. 


No momento da queda de seu filho, estava passeando com o cachorro dos patrões. Perdido no prédio, Miguel saiu do elevador, pulou uma janela e subiu num gradil chamando pela mãe, o que causou a quebra de uma das barras de ferro onde a criança estava apoiada, causando sua queda e morte.


Um ano se passou e o inquérito foi concluído com a denúncia contra Sari feita pelo Ministério Público de Pernambuco, levando o caso à justiça sob os cuidados do Tribunal de Justiça de Pernambuco. A ré também sofreu um pedido de agravamento da pena porque o crime foi contra criança em meio à conjuntura de calamidade pública causada pela pandemia de Covid-19. Outro fato que pesou contra a acusada foi a gravação da câmera de segurança do elevador onde Miguel foi deixado sozinho, que mostrou Sari tentando acionar o botão que leva à cobertura, antes de sair e deixar a criança sem supervisão.

 

 


No momento, o processo ainda se encontra na fase de oitivas às testemunhas, ainda sem que a ré (Sari) tenha sido interrogada. A batalha judicial, no momento, enfrenta problemas devido a uma audiência realizada sem a presença de Mirtes ou seus advogados, cuja anulação é pleiteada por seus advogados, com nova convocação da testemunha de Tracunhaém, chamada a depor através de carta precatória. 


De acordo com Rodrigo Almendra, advogado de Mirtes no caso de Miguel, cartas precatórias são meios utilizados pela Justiça para convocar testemunhas de cidades distintas daquela onde o processo corre para que sejam ouvidas. Quando uma audiência é marcada, os advogados devem ser informados a respeito, mas cabe a eles ir atrás das informações necessárias para comparecimento à audiência. O problema, segundo ele, é que os precatórios estavam sob sigilo e não apareciam no sistema de acompanhamento do processo. 


“A gente escreveu para a Vara dizendo que expediram as cartas, mas elas não estavam no sistema. Pedíamos notícias, mas os e-mails eram incompletos e soubemos pela imprensa que a audiência já tinha sido realizada, que a Comarca de Tracunhaém pediu o telefone dos advogados de acusação, mas não nos informou sobre a audiência. Deu-se a lambança e isso chateou Mirtes. Eu entendo, é o processo do filho dela e a demora do processo jurídico intervém para o adiamento do processo de luto”, explicou o advogado. 


Rodrigo também contou que, no momento, aguarda um parecer do Ministério Público de Pernambuco (MPPE) sobre o pedido de anulação, com posterior julgamento por parte da Justiça. Ele explicou também que atualmente só faltam as oitivas das testemunhas de Tracunhaém e Tamandaré convocadas pela defesa para que Sari seja interrogada e a primeira fase do processo seja concluída. 


Além do processo criminal que apura os fatos acerca da morte de Miguel Otávio, a briga entre Mirtes e sua mãe, avó de Miguel, Marta Santana, vai a outras instâncias pois ambas recebiam salários através da Prefeitura de Tamandaré enquanto trabalhavam na casa do prefeito Sérgio Hacker e sua esposa, Sari, no Recife, sem saber que se trata de uma conduta improba. O processo movido na Justiça do Trabalho determinou que Sérgio e Sari paguem salários e benefícios trabalhistas atrasados para Mirtes e Marta, como 13º salário, férias e Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), além de duas multas por rescisão de contrato, além de R$ 386.730,40 por danos morais coletivos. 


Silêncio e Ausência

 

 

 

Em entrevista ao Diario de Pernambuco, Mirtes falou que apesar de ter que lidar com diversos processos em sua batalha pela condenação da pessoa responsável pela morte de seu filho, o mais difícil para ela, passado um ano desde a queda de Miguel, é conviver com o silêncio e vazio em casa, diante da ausência de seu único filho. 


Na sala de sua residência, que segue com fotos e brinquedos do menino no móvel que apoia a televisão, descreveu a rotina de sua vida antes da morte do menino. O dia começava cedo, com toda a preparação necessária para levar Miguel até o hotelzinho onde ele ficava para que ambas, mãe e avó, pudessem trabalhar. Em seguida, ia à escola e, na volta, brincava, fazia as tarefas e passava um tempo com a família antes de jantar e ser posto para dormir pela mãe após suas orações. Em seguida, Mirtes fazia os preparativos para tudo correr bem no dia seguinte. Nos dias livres, como finais de semana, ela levava Miguel para passear e brincar, e ainda que estivesse sem dinheiro, buscava levar o filho a lugares dos quais ele gostava, como à praia, por exemplo.


A trágica morte de seu filho, segundo Mirtes, mudou tudo completamente, revirando toda a sua vida. Com o desligamento do emprego, ela precisou de ajuda num primeiro momento para, literalmente, sobreviver até conseguir outro trabalho. Hoje Mirtes está cursando graduação em direito e trabalha em home office para as ONGs Curumin e Afro Resistence, além de cuidar dos processos e atos pela memória de Miguel, exigindo mais celeridade do Poder Judiciário e insistindo para que o caso não seja esquecido pela sociedade. 


Em meio a todas as mudanças, ela conta que a ausência de Miguel ainda causa muito sofrimento e vontade de “fazer besteira”, exigindo acompanhamento psicológico constante. Seguir vivendo na casa onde morava com o filho, sem que ele esteja mais lá, é uma das maiores dificuldades apontadas por ela no processo de conviver com a perda do menino. 


“Criança é a vida de uma casa, é bem difícil viver com esse silêncio, com a ausência dele. Tento ocupar ao máximo minha mente para não focar tanto nas lembranças, mas a casa em si é Miguel, tudo lembra Miguel. Tento não focar tanto nisso, naquela cena horrível do que aconteceu. Às vezes eu olho, bate aquela saudade de quando a casa estava arrumada, arrumação era os brinquedos dele tudinho aqui na sala espalhado. (...) Pegava a bicicleta, saía andando dentro de casa, Às vezes eu reclamava, ‘em casa não, vá lá para fora, pro terraço’. Andava de patinete, brincava na rua com os meninos, e não tem mais isso de ficar o tempo todinho ‘Miguel, Miguel, Miguel faz isso’, de ele vir e me abraçar, me chamar de meu amor, minha gostosa, que eu chamava ele de meu gostosinho e ele chamava ‘mamãe gostosa’. Ouvir aquela voz dele, mas não tem mais”, contou Mirtes emocionada.


Durante a entrevista, Mirtes revelou que ela e sua mãe já sofreram outra perda importante antes da morte de Miguel, que foi a de seu irmão. Ao falar sobre a dor pela morte de seu filho, ela narrou uma situação em que viu o desespero de outra mãe que tinha perdido seu bebê no hospital, do desespero que era imaginar o mesmo acontecendo com Miguel sem jamais imaginar que um dia entenderia o que significa para uma mãe perder o filho. 


“Miguel estava doente, levei ao hospital e chegou uma mãe correndo com o bebê dela, o menino praticamente morto, morreu engasgado com leite. Ela não soube fazer a manobra para desengasgar o filho e acabou ele partindo. Doeu muito ver o desespero daquela mãe por perder o filho. Naquele momento não só eu como muitas mães que estavam ali abraçaram seus filhos, eu chorei tanto, abracei tanto Miguel e disse ‘meu filho eu não sei o que seria da minha vida se eu te perder, meu amor’. Abracei tanto que ele disse ‘não mamãe, a senhora tá me apertando’. Eu senti por aquela mãe e hoje eu estou sentindo a dor que ela passou. Hoje realmente eu sinto a dor que mainha passou quando perdeu meu irmão e é muito doloroso, é dilacerante, uma dor que eu não sei nem explicar direito como é. Não desejo a ninguém passar por isso”, disse a mãe de Miguel. 


Hoje, passado um ano de luto, tristeza e revolta pela morte de Miguel e pelo tratamento dado ao seu caso pelas autoridades competentes, Mirtes conta que deseja, no futuro, se mudar para outra casa e conta que há momentos em seu dia a dia nos quais a falta do filho “aperta” mais. “Meu aniversário, que eu passei sem meu filho que era o melhor presente que Deus tinha me dado e hoje estou sem ele. O dia das mães foi horrível para mim, ver as mães com seus filhos e eu sem meu neguinho comigo. Foi bem doloroso para mim. Aqui em casa me aperta muito o coração a noite, que não tenho meu neguinho para botar para dormir. A gente deitava, rezava o pai nosso, ave maria e santo anjo do senhor para depois ir dormir e eu não tenho mais ele”, contou Mirtes.


Apesar de toda a sua dor, Mirtes afirma que até hoje não teve o direito de viver de fato o luto pela perda de Miguel, devido às consequências jurídicas causadas pelas circunstâncias que envolvem sua morte. Ela conta que estaria ao menos conformada se o menino tivesse tido uma morte por causas naturais, mas que a maneira como a vida dele se perdeu impossibilita qualquer conformismo, devido à enorme necessidade de seguir lutando por justiça. 


“Hoje tenho que estar travando essa batalha no judiciário para que ela [Sari] seja condenada e presa. Sempre tenho que estar encontrando formas do caso de Miguel não cair no esquecimento, cobrando do Judiciário para eles fazerem algo que eu não precisaria nem estar cobrando. Isso machuca muito, é muita pressão psicológica, um fardo muito grande nas costas. Eles poderiam me poupar muito em relação a isso, mas não querem poupar, parece que sentem prazer em me massacrar. Ela cometeu um crime e tem que pagar por isso, se fosse eu, estaria pagando, já estaria presa e olhe lá se estivesse com vida”, contou Mirtes.


Ao final da conversa, Mirtes afirma que sua expectativa hoje é que o Poder Judiciário haja com seriedade e respeito com o caso de seu filho, “e faça o que eles têm que fazer e sejam mais céleres com o processo de Miguel. Um ano e a gente não terminou nem a primeira fase. O judiciário está me decepcionando muito e eu só quero que sejam mais céleres com o processo de Miguel. Vai dar certo, estou lutando para isso e vou conseguir o que eu quero, a condenação e prisão de Sari Corte Real”. 


Saudade Compartilhada

 

 

 

A falta que Miguel Otávio faz não atinge apenas a sua família, é compartilhada com outras pessoas que o conheceram em vida, viviam por perto do menino e hoje lidam com sua ausência. Sueli Camilo da Silva era a responsável pelo hotelzinho onde o menino Miguel ficava antes de ir para a escola. De acordo com dona Sueli, Otávio (como ela o chamava) era um menino tranquilo e adorava ir ao hotelzinho que frequentava desde um ano e meio de idade, onde era muito querido por todas as cuidadoras e faz muita falta.


“Minha relação com Otávio era muito afetiva, de vó mesmo. Quando chegava ele dava a ‘bença’, chamava de vovó Sueli. Quando chegava outro bebê menor a atenção era para essa criança e ele me ajudava. Ele acostumou-se a estar no hotelzinho sempre fazendo alguma coisa comigo”, contou dona Sueli, que também relembrou momentos de alegria de Miguel Otávio quando ele chegava ao hotelzinho, na hora do almoço e ao precisar se despedir, quando muitas vezes não queria ir embora. 


Compreender e aceitar que não veria mais o menino foi um processo difícil e doloroso tanto para Sueli como para outras pessoas que faziam parte do hotelzinho. “Minha nora tinha Otávio como filho, ele chamava ela de mamãe, para você ver como era a relação. Eu dizia que eu não tinha um hotelzinho, tinha uma casa na qual os meninos eram meus netos.A gente tem buscado dar força a Mirtes e dona Marta, porque a gente sabe como é difícil perder uma pessoa da família, principalmente uma criança. Como ele era muito próximo, tá sendo muito difícil”, contou dona Sueli, que também tem a sensação de luto incompleto pela falta de respostas da Justiça junto a Mirtes, Marta e às mães de outras crianças que acompanham o sofrimento da mãe de Miguel.


As coisas também não foram fáceis para Priscila Lúcia Monteiro, professora de Miguel na Escola Rei Davi durante dois anos. Ela conta que ele era um dos primeiros a chegar na sala e gostava de se sentar na fila da frente para prestar atenção e ajudar tanto a professora como seus coleguinhas.


“Senti muito porque além de ser professora dele eu sou mãe. A gente tem empatia, se coloca no lugar do próximo. Na aula online ele sempre estava presente”. Lidar com as aulas virtuais para a turma de Miguel após a sua morte também foi um momento difícil e repleto de dor, pois, segundo Lúcia, os colegas de turma perguntavam onde estava Miguel. 


“Os coleguinhas ficavam perguntando por ele na aula on-line e alguns já sabiam. A gente tentou conversar com os pais para que pudessem explicar de alguma forma o ocorrido, a gente tentou trabalhar com os pais para explicar essa falta do coleguinha que sempre esteve na sala e de repente não vem mais. Foi trabalhoso até para mim. A gente sente. Quando vejo a mãe me lembro dele, das atitudes na sala de aula, não será esquecido”, contou a professora que também se sente como Mirtes ao ver notícias ou fotos de Miguel, sabendo que ele se foi tão precocemente. 


Zilda da Conceição, conhecida como Dona Zilda, tem uma pequena venda em sua casa, na mesma rua onde Miguel morava e costumava vender confeitos e ver o menino brincar com seus netos e outras crianças pela vizinhança. Ela conta que no dia em que teve a notícia sobre a morte do menino, se sentiu muito triste e decidiu prestar solidariedade a Mirtes, recebendo um abraço do qual se lembra e diz que sente até hoje. 


“Nunca esqueci. É uma dor muito grande, o mesmo que uma facada na pessoa”, disse ela com lágrimas nos olhos.Ela se recorda de Miguel como um “excelente menino” que “não aperreava ninguém”, o via brincar e se emocionou ao lembrar do momento em que soube que Miguel havia “se tronado uma estrela” e já não voltaria mais para comprar confeitos em sua venda ou brincar com os outros meninos. “Isso comove e dá saudade. Aqui perto tem uma mãe que também tem um Miguel, às vezes a gente ouvia ela chamando o filho e lembra de Miguel, a gente chora. Toda reportagem que tem comove”. 


Dona Zilda também falou sobre a dor de Mirtes e sua mãe, Marta, referindo-se a ambas como mulheres muito fortes por suportar tamanho sofrimento e seguirem lutando por justiça. “Além de perder o filho dessa maneira cruel, o povo não tem dó e demora a resolver. Nada traz a vida dele de volta, mas ter justiça alivia o coração dessa mãe e da avó”, disse ela.