Em meio ao silêncio sepulcral da pandemia, campanha de livros luta por sobrevivência na busca por doações
"Estou aqui! Com livros, álcool 70 e meu sorriso, agora nos olhos". Como o tiro desarmado em meio a realidade reconfigurada pela pandemia da Covid-19, a potente frase compõe a paisagem da rua do Bom Jesus, localizada no Bairro do Recife, e eleita a terceira rua mais bonita do mundo em 2020. O local, que por si só constrói parte da memória afetiva da cidade, fica ainda mais alegre aos domingos, dia considerado sagrado para a autora do dito, Si Cabral. A assistente social aposentada de 71 anos, que também é contadora de história, escritora e poeta, há sete anos ocupa uma das barracas da feirinha da rua histórica, levando às calçadas a campanha "A Literatura no Meio do Povo, Adote um Livro", que hoje, em meio à escassez de doações de livros, também se vê diretamente afetada pelos efeitos do novo coronavírus.
Depois de ser paralisada em março, a feira do Bom Jesus retornou no final de julho, mas, além de ser grupo de risco, Si, que também tem um espaço para a venda de livros na Universidade Católica de Pernambuco, precisou passar por um procedimento de catarata e seu retorno às atividades teve que ser adiado no período. No segundo domingo de outubro, a aposentada voltou a abrir a barraca de livros no Bairro do Recife, mas viu que nada era como antes.
“Ruas vazias, hospitais cheios. Muitas vidas ceifadas. As autoridades declararam que diante da pandemia, todas as festas seriam canceladas. Estavam isolados e enlutados!", diz um trecho do conto infantil produzido por Si, A Revolta das Galinhas, em referência à pandemia, que continua. "Tudo era silêncio à solidão, em respeito aos que partiram e a solidariedade ao sofrimento alheio. Ela olhava para o céu e perguntava: “Por que tamanha judiação?”. Com o questionamento, a aposentada continuou sentindo na pele a dor do distanciamento impositivo provocado por um vírus invisível, após longos sete meses sem, como de costume, colocar sua cadeira e o já o famoso "pé de livros" - apelido dado por ela a um pé de palmeira que serve para apoiar alguns livros -, em frente à sinagoga Kahal Zur Israel, na feirinha do Bom Jesus.
"Nós deixamos de trabalhar, eu não poderia ir mais para o Recife Antigo, além do fato de não sair de casa e não poder levar a campanha para as ruas", lamenta. Para a campanha, que tem o objetivo de estimular e aproximar as pessoas da leitura, assim como expandir o aprendizado cultural, e divulgar o trabalho de autores pernambucanos, Si conta que antes da pandemia, era comum receber doações mensais de livros, que vão da gastronomia a cursos de idiomas, e são comercializados a partir de R$ 5. Desde que retornou ao posto, contudo, ela relata que ainda não recebeu doações, e essas têm feito falta. "Quando estou no meio do público, eles se oferecem para levar livros. Com a pandemia, acabou o contato com as pessoas e inviabilizou a doação dos livros, impediu a divulgação, e essa troca afetiva entre mim e o público”, enfatiza, inconformada.
A angústia é intensificada, principalmente quando ela lembra que o trabalho aos domingos surgiu a partir de uma inquietação. Entre o ritmo acelerado do comércio, Si percebeu um vazio nas feiras por onde já passou. Primeiro, em Camaragibe, sua cidade natal, à qual tem um livro dedicado, chamado Memórias de Camaragibe (2007) - que narra o imaginário afetivo construído no município - e onde ocupa uma cadeira na Academia Camaragibense de Letras. Depois, na Festa Literária Internacional de Pernambuco (Fliporto), quando conseguiu vender parte dos livros expostos após criar o nome da campanha.
"Eu me questionei: por que não pode ter livros na feira? O início dessa campanha foi uma aventura, que eu comecei por brincadeira, era como uma festa, eu ia cheia de alegria. Eu voltava para casa com o ego amaciado e para as pessoas tinha um valor imenso, elas ficavam admiradas em ver uma cadeira cheia de livros com a literatura no meio do povo. Era uma contrapartida. Foi aí, que eu comecei a encarar com seriedade e levar essa campanha para as ruas”, conta, ao passo em que cita a admiração pelos escritores pernambucanos Melquíades Montenegro, Fátima Quintas, Cícero Belmar e Djanira Silva, e ressalta o papel do livro como agente de transformação social.
“Eu nasci com essa paixão por livros. Sou uma pessoa de origem humilde e na minha casa, onde as pessoas eram operárias, não tinha livros. Minha grande preocupação é que eles circulem, porque se todas as pessoas pudessem ter livros nas mãos, certamente não pegariam em uma arma”.
Histórias contadas
Entre os que esqueceram ou aqueles que sequer atentaram para a falta que um livro pode fazer, gradualmente, Si Cabral mantém a esperança de continuar promovendo "A Literatura no Meio do Povo, Adote um Livro", também através de recordações que alimentam a alma.
“Na separação dos livros, eu encontro tanta carta bonita, tanta carta de amor, de amigos conversando uns com os outros, dando conselhos, numa linguagem tão genuína que eu fico encantada. É algo muito interessante, eu não destruo, eu guardo". Em uma dessas ocasiões destemidas, de acordo com Si, uma amiga se direciona à outra: "Que silêncio sepulcral é esse?”, após dias sem ter retorno sobre o diálogo antes estabelecido. Ela conta que também encontra fotografias, endereços, números de telefone, mas rasga todo o material que, de alguma forma, identifique o doador, embora para toda regra exista uma exceção.
“Fotografia geralmente eu rasgo, a gente não pode jogar fora, porque não sabe onde vai bater. Quando foi um dia, eu achei nove fotografias do tamanho de uma folha de caderno pequeno, que era de uma família linda. Eu via que as pessoas estavam felizes, em uma festa. Eu achei tão bonito, que não joguei fora. Olhei do outro lado da foto, e vi que o fundo estava amarelado e tinha uns jovens sentados no sofá se abraçando".
“Eu peguei uma que tinha o rosto maior, coloquei em um saco plástico e pendurei todo domingo na barraca por seis meses. Um dia, passou uma moça com um rapaz passeando, olhou a fotografia e disse: ‘meu Deus, isso aqui é da minha família’. Eu fui até ela, contei que achei entre os livros e que tinha achado tão belas que eu não tive coragem de rasgar, e esperei por seis meses alguém passar por aqui e reconhecer, até que ela veio. Ela ficou tão emocionada e, inclusive, uma pessoa da foto tinha morrido há pouco tempo. Era uma tia dela”, descreveu, ao relembrar a simbologia que as fotos tinham para a pessoa citada.
Além de Memórias de Camaragibe, Si Cabral também é autora de A Grande Roda da Vida (2005) e de a Galinha Tufinha e a Raposa Malvada (2012), esse último que atenta, de forma lúdica, para os cuidados que pais e crianças precisam ter com a pedofilia e o sequestro.
Para ela, as tantas funções que exerce envolvendo o trabalho com livros no dia a dia rendeu bons frutos. “A literatura me trouxe um poema que eu escrevi, chamado Homenagem à Paz (2003), em homenagem a Sérgio Vieira de Melo, que lutou na ONU pela paz. Esse poema, hoje, está publicado em 180 países”, diz orgulhosa, ao mencionar que também faz parte da Associação de artistas e escritores Internacional (International Writers and Artists Association).
Além do anseio por voltar a receber doações de livros, Si Cabral salienta o desejo de que as pessoas se previnam da Covid-19. "Passamos de março até dezembro e conseguimos escapar. Todo mundo teve que usar máscara. O que eu peço é que as pessoas tenham paciência, fiquem em casa, peguem um livrinho que custa 5 reais e vão ler. O que salva a humanidade é a arte, através da literatura, música e teatro”.
Serviço:
Local: Feira do Bom Jesus, Bairro do Recife
Contato: (81) 9609 4152