Vida Urbana

Desenhada por Niemeyer, torre da Manchete em Olinda sofre com vandalismo

Tombamento da torre, localizada em Ouro Preto, tramita desde 2017 na Fundarpe.

Primeira obra do arquiteto Oscar Niemeyer em Pernambuco, a torre da extinta Rede Manchete sofre com o abandono. Em visita ao espaço, localizado em Ouro Preto, Olinda, o Diario constatou a intensa degradação do ambiente, pichado e depredado. O processo de tombamento está parado na Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe), que cobra provas da autoria de Niemeyer. Além disso, o entorno da antena está ocupado por cerca de 200 famílias que precisam de doações por causa da pandemia do novo coronavírus.

O terreno tem 8 hectares e pertence à massa falida da Manchete, que fechou as portas em maio de 1999 após sucessivas crises financeiras. Ele tem duas construções: a torre e um prédio térreo, que abrigava estúdio, redação e ambientes administrativos. Sem telhas ou coberturas, o prédio térreo, dividido entre várias famílias, padece com goteiras e cheiro de mofo. A situação precária se repete nas outras construções irregulares do espaço - algumas são mais estruturadas, de alvenaria, enquanto outras são de madeira e lona plástica.

No primeiro pavimento da cúpula, forro de gesso foi destruído e entulhos se acumulam. Local abrigava a direção regional da TV.

A cúpula tem dois pavimentos. O primeiro é o das janelas grandes e redondas, espaço onde ficava a direção regional da TV. As paredes estão descascando e entulhos se acumulam no piso. O segundo andar, caracterizado por janelas redondas menores, tem várias poças de água e lixos úmidos. No topo, a antena que emitia os sinais da Manchete segue em pé, mas pichada e enferrujada.

História
O empresário Adolpho Bloch inaugurou a Manchete em 5 de junho de 1983, mas ela só começou a operar em Pernambuco no ano seguinte, pela demora na conclusão das obras da torre, em um terreno que um dia pertenceu à antiga Fosforita. A torre foi concluída em janeiro de 1984, conforme noticiado pelo Diario à época, e em 3 de março entrou no ar oficialmente. Os anúncios da chegada da nova emissora ao estado grafavam que a construção foi desenhada por Niemeyer, amigo pessoal de Bloch, que tinha uma ideia ambiciosa para o terreno: queria erguer um centro cultural.

A planta original previa a construção da torre e de dois prédios - um de dois andares para abrigar o setor administrativo e outro de três que abrigaria um teatro. Só a torre saiu do papel. Posteriormente, no fim dos anos 80, foi criado o anexo térreo, com estúdio, redação e demais setores administrativos. Na antena ficaram equipamentos de transmissão, controle mestre, caixa d’água, subestação de energia e a direção regional.

A ideia do centro cultural esbarrou nos problemas financeiros do Grupo Bloch, que resultaram, anos depois, no fim da Manchete, em maio de 1999. No lugar, em novembro do mesmo ano, veio a RedeTV. Ela passou a usar a torre, pagando o aluguel diretamente à massa falida, mas em 2017, com o fim da transmissão analógica, começou a planejar a saída do terreno.


“A torre era muito bonita. O (Adolpho) Bloch queria que fosse feito algo legal”, relembra o radialista Romildo França, histórico funcionário da Manchete no estado e que hoje trabalha na RedeTV. “No dia que entregamos o imóvel à massa falida, de dia tiramos a segurança e desligamos a energia da torre de dia e, à noite, invadiram e depredaram tudo”, conta.

Dias depois, em junho de 2018, os arredores da torre foram ocupados por sem-tetos da própria vizinhança. Nascia ali a ocupação de Vila Manchete 2. “Só tinha mato fechado e estava começando a ter um monte de caso de estupro. Aí a gente veio para cá”, justifica a líder comunitária Rosecleide Pinheiro. No início eram 70 famílias. Agora, são 200. “Cuidamos da torre na medida do possível. Tem muita criança morando aqui. Toda vez que alguma chega perto a gente avisa para não entrar. Eu mesma já comprei tijolo e cimento para fechar os acessos. Quem deveria cuidar não está nem aí”, relata.

“A gente gostaria muito que o poder público olhasse mais para a gente aqui, dar um apoio. A situação é complicada. Há idosos, crianças, grávidas. Ninguém está aqui porque quer, muitos moravam na rua. Isso daqui não é um ambiente familiar, não tem água encanada, não coletam lixo porque não é espaço público, ninguém chega aqui para doar material de higiene ou comida”, revela Rosecleide. A situação só não é de penúria total porque uma igreja evangélica da vizinhança ajuda como pode.

O presidente da AIP, Múcio Aguiar, explica que essa situação era previsível. “A associação fez o pedido de tombamento à Fundarpe muito antes da RedeTV sair de lá. Estávamos preocupados. É a primeira obra de Niemeyer em Pernambuco e a única dele em Olinda. Quando houve a invasão, denunciamos ao Ministério Público (MPPE) para que tomasse providências para garantir a salvaguarda do imóvel. Caberia aí ao governo do estado garantir essa preservação. Resolver o impasse das famílias que se abrigaram ali, desocupar o terreno. Na Prefeitura de Olinda ele já é um imóvel histórico”, defende.

A presidente da Fundação Oscar Niemeyer, Ana Lúcia Niemeyer, lastima a degradação da torre: “É lamentável o descaso do poder público (em todos os níveis, federal, estadual e municipal) com a nossa memória. Parece que não há a sensibilidade para reconhecer o valor histórico e cultural. Mas não havendo interesse por parte da comunidade, mobilização popular, dificilmente serão tomadas providências”.

Desinteresse e exigência de provas
O processo de tombamento está paralisado por dois motivos: desinteresse da administração do espólio da Manchete e provas efetivas de que a torre foi projetada por Oscar Niemeyer. A Fundarpe informa que o síndico da massa falida, Manuel Antonio Angulo Lopez, posicionou-se contra o procedimento “sob o argumento da indisponibilidade de recursos para a manutenção da torre, conforme é exigido quando se trata de um bem tombado e, ainda, da pouca relevância do projeto de Niemeyer quando comparado às outras grandes obras do arquiteto, somado a pouca representação histórica, artística e arqueológica para o estado”.

“A Fundarpe entrou em contato por e-mail com o Instituto Oscar Niemeyer solicitando cópias dos documentos existentes referentes à referida torre, recebendo resposta do senhor sr. Ciro Pirondi, informando que a fonte de transmissão da Manchete em Olinda não consta da base de projetos de Niemeyer daquele instituto. Após a informação recebida, foi enviado à AIP, proponente do tombamento, ofício solicitando comprovação da autoria do bem, que ainda não se pronunciou a este respeito”, diz o órgão.

Pichações e entulhos se acumulam ao longo da construção.

“Com a abertura do processo, o elemento está tombado, mas há uma série de famílias morando por lá. É preciso fazer um cadastro desse pessoal na prefeitura para avaliar quem tem direito a auxílio-moradia, já entrando no mérito social. E a obrigação de preservar a torre seria do síndico da massa falida, que é difícil de localizar. A prefeitura não pode intervir de qualquer forma”, pondera.

Múcio Aguiar, da AIP, rebate: “O que a gente apurou é que Niemeyer fazia o projeto, mas se outra pessoa contribuísse, ele não colocava o nome, não considerava como integralmente seu. Consultamos inúmeros profissionais que participaram da construção e todos confirmam a autoria. Tinha gente da própria equipe de Niemeyer que vinha acompanhar”. O desinteresse da massa falida também pouco importa para ele. “Ouvir o proprietário é apenas uma formalidade. Há uma omissão da Fundarpe. E ela, para não assumir isso, usa da opinião do síndico e do argumento de que não teria a caneta de Niemeyer”, pontua.

A Fundarpe e a Prefeitura de Olinda enviaram os mesmos esclarecimentos à promotora de Justiça de Habitação e Urbanismo de Olinda, Belize Câmara, que deverá notificar o síndico esta semana: “A gente vai demandá-lo, já que é um imóvel privado, para que promova a desocupação do terreno e estabeleça medidas para a conservação do bem. Também vamos verificar se há alguma ação prevista voltada para a preservação da torre”.

A torre não foi ocupada. 'Cuidamos dela na medida do possível. Eu mesma já comprei tijolo e cimento para fechar os acessos e ninguém vir fazer coisa errada dentro', conta Rosecleide Pinheiro.

Ajuda
As famílias da ocupação precisam de doações para enfrentar a pandemia da Covid-19. “Essa situação daqui do terreno é complicada. Aqui moram idosos, crianças, grávidas, e o poder público está nem aí para nós”, aponta a líder comunitária Rosecleide Pinheiro. Pode ser doado cestas básicas, remédios, produtos de higiene e limpeza e equipamentos de proteção individual (EPIs), como máscaras. Interessados em realizar a ajuda podem entrar em contato com Rosecleide, através do número (081) 98632-4427.

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