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E se Jesus Cristo nascesse nos dias de hoje, onde estaria?

Quando dezembro chegou, Cauã, 7 anos, pegou tinta, pincel e escreveu “Feliz Natal” na fachada da palafita onde mora, no bairro dos Coelhos, no Recife. “Natal é o amor”, segredou o menino quando perguntei sobre o significado da frase rabiscada com tinta roxa. Dentro do barraco de tábua construído na maré repleta de lixo, também há uma árvore de Natal branca e já gasta. Ela está decorada com bolas e pisca-pisca. Este ano, Cauã ganhou mais um irmão. Kaio está com três meses. Nasceu dentro da palafita, amparado por um lençol para não cair no chão de tábua cheio de frestas.
Pela primeira vez, a família planejou comemorar o Natal. Karen Kaerolainy Lins da Silva, 22, mãe de Cauã, Kaio e Kawê, este último com um ano e três meses, disse que a ceia aconteceria na casa da avó dela, no mesmo bairro. O motivo da comemoração não tem relação com mais fartura na mesa da família. “Antes a gente só comemorava o ano novo porque uma tia de minha avó tinha falecido no Natal. Mas, este ano, vem um parente da gente de São Paulo para ficar aqui e decidimos fazer um jantar.”
Karen, o marido e as crianças sobrevivem com uma renda fixa de R$ 294 por mês, referente ao Bolsa-Família. A família também conta com doações e com alguns “bicos” feitos por ela e o companheiro. Quando engravidou do terceiro filho, usava um DIU, colocado em um hospital público. A notícia da gravidez foi um impacto em uma família tão empobrecida. Pouco antes dos festejos natalinos, Karen ganhou um chester e um peixe. Levou os alimentos para a ceia na casa da avó.
Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), divulgado na semana passada, mostrou que as pessoas pobres ficaram ainda mais pobres nos três primeiros trimestres do ano. Traduzindo em dados, 51,8% dos brasileiros mais pobres não tiveram ou perderam rendimentos nos nove primeiros meses do ano.
Se não fosse a ajuda de voluntários, Karen, por exemplo, estaria em uma situação ainda pior. Quando gestante, participou de um programa chamado Gerando o bem, promovido pelo Instituto pelo bem, em Santo Amaro, no Recife. Até o bebê completar um mês, a gestante recebe uma cesta básica. “No caso de Karen, a situação dela é tão difícil que decidimos manter a entrega”, disse Jacira de Albuquerque, do Instituto.
Karen planejou passar o Natal com saúde e junto da família. Para ela, são os bens maiores. “Nunca esperei mais que isso. Também desejo um Natal tranquilo, calmo e próspero.”
Na região chamada Roque II, também nos Coelhos, vive Daniele de Paula Ferreira, 20, o marido e dois filhos: um menino com 1 ano e três meses e um bebê nascido no último dia 3 de dezembro. A situação financeira de Daniele é um pouco melhor que a de Karen porque o marido trabalha no setor de limpeza de uma empresa. Ela estava terminando um curso de confeitaria quando engravidou de Henzo, mesmo tomando anticoncepcional. Adiou os planos de melhorar a renda fazendo uma das coisas que mais gosta. Também está nos desejos de Daniele cursar direito.
Para a ceia de Natal, Daniele preparou uma lasanha, salada e arroz. Algo simples, disse ela, assim como a pequena casa de tábuas onde mora. A ideia era receber amigas que cresceram com ela no bairro e hoje moram em outros locais. “Aproveitamos para ler a Bíblia, conversar. Jesus nasceu para todos. Só que tem gente que não quer aceitar.” Daniele lembra que a mãe dela também faz aniversário no dia de Natal. Mais um motivo para um encontro fraterno.
Os textos bíblicos referentes ao Natal relatam o nascimento de Jesus em meio à pobreza extrema, assim como aconteceu com Kaio e Henzo. O padre Júlio Lancellotti, referência na defesa dos direitos da população de rua de São Paulo, lembra que a criança anunciada como o Salvador nasceu em meio aos desconsiderados, os desqualificados, como eram vistos os pastores de animais, na época. “Eles tinham um trabalho considerado impuro. Eram como pecadores, sem possibilidades de recuperação. No entanto, são eles que recebem a notícia de que a salvação chegou.”
Em texto escrito no início de dezembro, o papa Francisco ressalta o valor do presépio. “Nascendo no presépio, o próprio Deus dá início à única e verdadeira revolução que dá esperança e dignidade aos deserdados, aos marginalizados: a revolução do amor, a revolução da ternura. Do presépio, com meiga força, Jesus proclama o apelo à partilha com os últimos como estrada para um mundo mais humano e fraterno, onde ninguém seja excluído e marginalizado”, diz um trecho da carta do papa.
Em reflexão acerca do texto do papa, Lancellotti afirma que o presépio de Jesus mais uma vez estará no meio dos pobres este ano, por mais que as igrejas, os shoppings, as casas e as empresa estejam decoradas e iluminadas. “Hoje, sem dúvidas, o presépio do nascimento será no lugar onde ninguém vai estar na noite de Natal. Assim como no nascimento de Jesus ninguém estava lá. Nem perceberam que ele, o Salvador, tinha nascido. Os pastores foram avisados. Hoje os pastores seriam os moradores das palafitas, os moradores de rua, as pessoas em pior situação. São eles que vão receber o anúncio dessa alegria. Jesus vai trazer esperança para quem está na penúria. Se a igreja está bonita, fazendo festa, e o pobre está debaixo do viaduto ou em palafitas, é lá que Jesus vai estar.”
Para o frei Faustino dos Santos, frade franciscano da Ordem dos Frades Menores, a atitude cristã consiste em ir além de associar o nascimento de Jesus com a atual realidade social dos mais pobres. “Há facilidade em fazer essa associação. Jesus nasceu na periferia e muitos também nascem hoje. Mas a análise precisa ser mais profunda. Os católicos refletem Deus nascido pobre para libertar a humanidade do pecado, do sofrimento e da injustiça. O difícil é se comprometer e fazer com que o Jesus que nasce hoje em realidade de periferia e desigualdade saia dessa situação”, refletiu.
O religioso lembra a difícil busca de José e Maria por um lugar para se hospedar antes do parto, sem sucesso. “Hoje, percebemos que existia recusa para Jesus nascer. Maria e José batem na nossa porta constantemente, mas nossa falta de fraternidade e justiça não permite que Deus nasça em nossa vida. Fechamos portas. O questionamento que devemos fazer como cristãos é: como eu, que celebro o Natal com minha família, com ceia farta, me sensibilizo com essas realidades desumanas dos que nascem sem moradia, sem alimento? Não basta reconhecer que existe, mas fazer algo para mudar”, pontua o frade.
Para o franciscano, fazer Jesus nascer na igreja é fácil. Fazer Jesus nascer na vida das pessoas desesperançadas é mais difícil. “Nós, cristãos, deveríamos estar entre os mais pobres. Mas isso deve ser mais que assistencialismo. Acho que tem que dar comida a quem tem fome. Mas é preciso fazer mais que isso. É preciso lutar pelas políticas públicas, dar condições de dignidade a essas pessoas. Buscar equidade, dar conforme se necessita, assim como diz a campanha da fraternidade: Fraternidade e políticas públicas. Serás libertado pelo direito e pela justiça.” Sempre é tempo de refletir sobre a partilha, a solidariedade e a superação da desigualdade.
Pela primeira vez, a família planejou comemorar o Natal. Karen Kaerolainy Lins da Silva, 22, mãe de Cauã, Kaio e Kawê, este último com um ano e três meses, disse que a ceia aconteceria na casa da avó dela, no mesmo bairro. O motivo da comemoração não tem relação com mais fartura na mesa da família. “Antes a gente só comemorava o ano novo porque uma tia de minha avó tinha falecido no Natal. Mas, este ano, vem um parente da gente de São Paulo para ficar aqui e decidimos fazer um jantar.”
Karen, o marido e as crianças sobrevivem com uma renda fixa de R$ 294 por mês, referente ao Bolsa-Família. A família também conta com doações e com alguns “bicos” feitos por ela e o companheiro. Quando engravidou do terceiro filho, usava um DIU, colocado em um hospital público. A notícia da gravidez foi um impacto em uma família tão empobrecida. Pouco antes dos festejos natalinos, Karen ganhou um chester e um peixe. Levou os alimentos para a ceia na casa da avó.
Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), divulgado na semana passada, mostrou que as pessoas pobres ficaram ainda mais pobres nos três primeiros trimestres do ano. Traduzindo em dados, 51,8% dos brasileiros mais pobres não tiveram ou perderam rendimentos nos nove primeiros meses do ano.
Se não fosse a ajuda de voluntários, Karen, por exemplo, estaria em uma situação ainda pior. Quando gestante, participou de um programa chamado Gerando o bem, promovido pelo Instituto pelo bem, em Santo Amaro, no Recife. Até o bebê completar um mês, a gestante recebe uma cesta básica. “No caso de Karen, a situação dela é tão difícil que decidimos manter a entrega”, disse Jacira de Albuquerque, do Instituto.
Karen planejou passar o Natal com saúde e junto da família. Para ela, são os bens maiores. “Nunca esperei mais que isso. Também desejo um Natal tranquilo, calmo e próspero.”
Na região chamada Roque II, também nos Coelhos, vive Daniele de Paula Ferreira, 20, o marido e dois filhos: um menino com 1 ano e três meses e um bebê nascido no último dia 3 de dezembro. A situação financeira de Daniele é um pouco melhor que a de Karen porque o marido trabalha no setor de limpeza de uma empresa. Ela estava terminando um curso de confeitaria quando engravidou de Henzo, mesmo tomando anticoncepcional. Adiou os planos de melhorar a renda fazendo uma das coisas que mais gosta. Também está nos desejos de Daniele cursar direito.
Para a ceia de Natal, Daniele preparou uma lasanha, salada e arroz. Algo simples, disse ela, assim como a pequena casa de tábuas onde mora. A ideia era receber amigas que cresceram com ela no bairro e hoje moram em outros locais. “Aproveitamos para ler a Bíblia, conversar. Jesus nasceu para todos. Só que tem gente que não quer aceitar.” Daniele lembra que a mãe dela também faz aniversário no dia de Natal. Mais um motivo para um encontro fraterno.
Os textos bíblicos referentes ao Natal relatam o nascimento de Jesus em meio à pobreza extrema, assim como aconteceu com Kaio e Henzo. O padre Júlio Lancellotti, referência na defesa dos direitos da população de rua de São Paulo, lembra que a criança anunciada como o Salvador nasceu em meio aos desconsiderados, os desqualificados, como eram vistos os pastores de animais, na época. “Eles tinham um trabalho considerado impuro. Eram como pecadores, sem possibilidades de recuperação. No entanto, são eles que recebem a notícia de que a salvação chegou.”
Em texto escrito no início de dezembro, o papa Francisco ressalta o valor do presépio. “Nascendo no presépio, o próprio Deus dá início à única e verdadeira revolução que dá esperança e dignidade aos deserdados, aos marginalizados: a revolução do amor, a revolução da ternura. Do presépio, com meiga força, Jesus proclama o apelo à partilha com os últimos como estrada para um mundo mais humano e fraterno, onde ninguém seja excluído e marginalizado”, diz um trecho da carta do papa.
Em reflexão acerca do texto do papa, Lancellotti afirma que o presépio de Jesus mais uma vez estará no meio dos pobres este ano, por mais que as igrejas, os shoppings, as casas e as empresa estejam decoradas e iluminadas. “Hoje, sem dúvidas, o presépio do nascimento será no lugar onde ninguém vai estar na noite de Natal. Assim como no nascimento de Jesus ninguém estava lá. Nem perceberam que ele, o Salvador, tinha nascido. Os pastores foram avisados. Hoje os pastores seriam os moradores das palafitas, os moradores de rua, as pessoas em pior situação. São eles que vão receber o anúncio dessa alegria. Jesus vai trazer esperança para quem está na penúria. Se a igreja está bonita, fazendo festa, e o pobre está debaixo do viaduto ou em palafitas, é lá que Jesus vai estar.”
Para o frei Faustino dos Santos, frade franciscano da Ordem dos Frades Menores, a atitude cristã consiste em ir além de associar o nascimento de Jesus com a atual realidade social dos mais pobres. “Há facilidade em fazer essa associação. Jesus nasceu na periferia e muitos também nascem hoje. Mas a análise precisa ser mais profunda. Os católicos refletem Deus nascido pobre para libertar a humanidade do pecado, do sofrimento e da injustiça. O difícil é se comprometer e fazer com que o Jesus que nasce hoje em realidade de periferia e desigualdade saia dessa situação”, refletiu.
O religioso lembra a difícil busca de José e Maria por um lugar para se hospedar antes do parto, sem sucesso. “Hoje, percebemos que existia recusa para Jesus nascer. Maria e José batem na nossa porta constantemente, mas nossa falta de fraternidade e justiça não permite que Deus nasça em nossa vida. Fechamos portas. O questionamento que devemos fazer como cristãos é: como eu, que celebro o Natal com minha família, com ceia farta, me sensibilizo com essas realidades desumanas dos que nascem sem moradia, sem alimento? Não basta reconhecer que existe, mas fazer algo para mudar”, pontua o frade.
Para o franciscano, fazer Jesus nascer na igreja é fácil. Fazer Jesus nascer na vida das pessoas desesperançadas é mais difícil. “Nós, cristãos, deveríamos estar entre os mais pobres. Mas isso deve ser mais que assistencialismo. Acho que tem que dar comida a quem tem fome. Mas é preciso fazer mais que isso. É preciso lutar pelas políticas públicas, dar condições de dignidade a essas pessoas. Buscar equidade, dar conforme se necessita, assim como diz a campanha da fraternidade: Fraternidade e políticas públicas. Serás libertado pelo direito e pela justiça.” Sempre é tempo de refletir sobre a partilha, a solidariedade e a superação da desigualdade.