Grupos anônimos fortalecem luta contra as dores emocionais
Ajuda mútua fortalece o caminho em torno da ruptura com os ciclos viciosos e também auxilia pessoas a lidar melhor com os próprios sentimentos.
O ANTES
Uma vez por semana, na uma sala de um casarão no bairro de Casa Amarela, pessoas como Sérgio se unem para falar dos próprios sentimentos. São mentes com dificuldade de controlar as emoções, em busca de atenção. São os Emocionais Anônimos, um grupo que surgiu nos Estados Unidos, em 1971, derivado da prática dos 12 passos dos Alcoólicos Anônimos. Para eles, seguindo a mesma metodologia de partilha do histórico de vida com um grupo de desconhecidos, é possível alcançar o equilíbrio emocional.
O grupo se encontra dentro da sala de uma igreja evangélica, mas não tem qualquer conotação religiosa. As cadeiras são dispostas em formato de círculo. Diante dos presentes, uma placa verde e branca avisa: “quem você vê aqui, o que você ouve aqui, quando sair daqui, deixe que fiquem aqui”. Outra, nas mesmas cores, impulsiona a evitar, “só por hoje”, o descontrole emocional. Assim como na maioria dos grupos anônimos, o encontro começa com uma oração da serenidade.
“Aqui ninguém faz perguntas aos outros. Cada um tem 10 minutos para falar sobre qualquer quadro emocional”, explica o representante comercial Arthur*, 61, um dos fundadores do EA. Segundo ele, o foco não é tratar a doença emocional, mas trocar experiências. Dentre as situações elencadas como aptas a serem abordadas, estão ansiedade, depressão, medo, solidão, angústia, ciúme e tristeza.
Durante uma semana, cartazes com propaganda do grupo circularam nos ônibus do Grande Recife. Em um deles, estava Sérgio e as marcas da dor. Um jovem que escutou desde a infância que homens não poderiam ser artistas. Questionado pelos colegas pela habilidade de falar mais de uma língua. Forçado pela família a desenvolver atividades nas quais não tinha interesse. Questionador em uma sociedade controladora.
Quando ele começou a falar, um silêncio pairou na sala. “Me sinto um perdedor. Tentei me matar dois dias seguidos. Me pegaram, levaram para um hospital e lá fui amordaçado. Eu só queria me matar, acabar com algo que é meu”, disse. Em seguida, completou. “Mas, se estou aqui, é porque quero viver.”
Como Sérgio, das 14 pessoas do encontro daquele dia, seis viram cartazes nos coletivos. Pessoas com perfis distintos. Jovens adultos, homens e mulheres de meia idade. Idosos. Almas sinalizando a urgência de trabalhar as emoções. Vidas ansiando pelo escasso bem da atenção.
O MEIO
Emoções tolhidas, consequências futuras
Durante a infância, a biomédica Joana*, 30 anos, costumava ouvir que não podia chorar, que ter sentimentos era errado. Cresceu acreditando nisso. Tímida, não dizia o que estava pensando aos outros. Recusava convites para sair de casa, com a desculpa dos estudos. Tinha vergonha dela e do mundo. “Me sentia deslocada em todos os lugares”, conta. Há mais de um ano no Emocionais Anônimos, ela descobriu ouvindo os companheiros que vivia um represamento das emoções. Hoje, frequentando os encontros, está aprendendo a superar.
“As emoções estão dentro do conjunto de formação de gênero, psíquica, do sujeito. Elas costumam ser repreendidas, em função de uma cartilha de como agir em socidade”, afirma o psicólogo especializado em prevenções clínicas de base psicanalítica pela Fafire Rafael Matias. O medo de lidar com as emoções afastou a dentista Júlia*, 49, várias vezes do EA. “Sempre usava uma desculpa. Já cheguei a bater na porta e voltar. Eu achava que meu descontrole não era um problema. Eu descobri aqui, basicamente, que tinha uma chance, que podia melhorar”, lembra.
Os grupos de ajuda mútua têm a função de fortalecer o sujeito. São mãos entrelaçadas segurando umas as limitações das outras. Mas esses grupos, ponderam os especialistas, não susbtituem a intervenção profissional. São complementares. No caso de dependência química, a taxa de eficácia dos grupos anônimos nas abstinências de até um ano é de 30%. Quando há a inteverção concomitante com medicações, esse percentual dobra. Já se a pessoa tenta sair da adicção só, a eficácia é de 5%, esclarece a médica psiquiátrica, membro da Comissão de Dependência Química da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), Analice Gigliotti.
Embora o desejo de cura seja o motivo de muitas pessoas para procurarem os grupos de ajuda mútua, ele não é também o objetivo desses encontros, pontua o psicólogo especializado em prevenções clínicas de base psicanalítica pela Fafire Rafael Matias. “A cura vem como um processo de tabela, ela acontece aos poucos. O grupo serve para dar sustentação, ainda que você se sabote, é acolhido e pode rever o comportamento.”
Vencendo o impulso de comprar
Durante uma tarde, a professora aposentada Rogéria*, 54 anos, estava assistindo televisão quando encurralou a própria dependência nas perguntas de uma psicóloga entrevistada. Naquele momento, ao responder “sim” a quatro questionamentos, descobriu que era uma compradora compulsiva. O grupo terapêutico dedicado a tratar a oniomania, a adição consumista que acomete 5% da população no mundo, buscava integrantes. Com mais de 20 cartões de crédito e uma emaranhado de dívidas, a professora decidiu que era o momento de enfrentar as próprias limitações. Está, aos poucos, fechando o rombo financeiro no qual entrou sem perceber.
Rogéria começou a adquirir objetos sem parar no fim da adolescência. Demorou quase 10 anos para ela entender que talvez não precisasse daquilo tudo. Já gastava mais com o cheque especial do que o valor do salário. “Estava vivendo num mar de dívidas, mas os problemas iam além do financeiro. Era um sofrimento grande, desenvolvi depressão, por não enxergar uma luz no fim do túnel”, conta. Ao assistir a reportagem, Rogéria encontrou essa luz. Ingressou primeiro no grupo terapêutico, com outras sete pessoas. Em vinte encontros semanais, acompanhada por psicólogos e psiquiatras, abriu a própria realidade a desconhecidos, percebeu que a baixa estima estava por trás da vontade de consumir e começou a colocar as contas em dia. Aprendeu que não estava sozinha.
A partilha foi determinante. Os laços firmados foram tão fortes que, mesmo depois de encerrado o processo terapêutico, Rogéria e os outros integrantes agora seguem como grupo de ajuda mútua. Encontram-se uma vez por mês, no Hospital Universitário Oswaldo Cruz (Huoc). “A gente chega achando que não tem salvação. Mas ouvindo as pessoas, vendo elas te dando atenção sem precisar de justificativas, descobre que na verdade é um transtorno tratável.” Ela quebrou todos os cartões e pagou parte das dívidas. Restam três. Sempre que passa em um centro de compras, tem o compromisso de se perguntar: realmente eu preciso disso agora?
Madrugada dedicada a estranhos
Durante todos os dias, Salomão*, 50 anos, é administrador de empresas. Uma vez por semana, é a voz do conforto de pessoas em situação de desamparado emocional. Há 15 anos, ele decidiu trocar uma noite de sono para ajudar o próximo. Toda sexta-feira, a partir da segunda hora da madrugada, senta diante de uma cadeira, num apartamento residencial no Centro do Recife. Joga fora os preconceitos e toma o fôlego do altruísmo. Salomão é um dos ouvidos do Centro de Valorização da Vida (CVV). O anonimato, nesse caso, é um exercício inquebrantável de empatia.
Salomão buscava uma forma pouco convencional de solidariedade quando encontrou o CVV. Fez uma seleção para ingressar no serviço de apoio emocional e prevenção ao suicídio e aprendeu uma lição: a verdadeira acolhida consiste em deixar os julgamentos de lado. Por isso, ninguém se identifica. Por isso, também, no espaço da ligação não existem certo e errado.
Até hoje, somente a esposa sabe que ele é voluntário do centro. Nas cinco horas em que permanece à disposição do outro, atende em média 20 ligações. Algumas duram segundos. Outras uma hora. São desconhecidos revelando tristeza, incompreensão, envolvimento com drogas, problemas de relacionamento, transtornos bipolares, ansiedade ou de doenças terminais. Os preconceitos de raça e gênero também são mencionados. “Existem formas de ajudar que não são dar dinheiro. A gente se autointitula um amigo, um pronto socorro provisório. Tentamos proporcionar um ambiente no qual a pessoa se sinta compreendida, ouvida e comece a enxergar alternativas para os seus problemas”, explica.
O psicólogo Rafael Matias afirma que escutar sem julgamento é ter empatia pela dor do outro. “A patologia emocional, por ela não ser vista, às vezes não é sentida pelo outro. Ter uma escuta empática é um dever e compromisso de todos.” Entretanto, são poucas as pessoas dispostas a fazer o papel de Salomão. Hoje o CVV em Pernambuco opera com 44 voluntários. Todo ano, faz quatro seleções. Dos 50 interessados, apenas sete chegam à fase prática. Desses, depois de um ano, sobram no máximo dois.
O DEPOIS
O abraço virtual em Elaine
Depois do nascimento do filho, Elaine Cavalcanti, 34 anos, passou a viver enclausurada. Pedro nasceu com epilepsia de difícil controle e tinha mais de 24 crises convulsivas por dia. A condição estabelecia à mãe uma vida limitada às paredes da própria casa, um imóvel de três cômodos, nos fundos de outra residência. Por meses, o maior contato de Elaine com o mundo se deu pela tela do computador. No espaço virtual, o cotidiano ganhava amigos, alento. Elaine transgredia as amarras da realidade e afugentava por alguns instantes a solidão. A acolhida forjada no ambiente online foi a salvação para a vida de Pedro.
Dedicada a cuidar do filho, Elaine tinha medo de sair. Passava os dias observando a criança. Nos intervalos, corria para a internet em busca de informações que justificassem a condição de Pedro. Assim, ela acabou entrando num jogo que simulava a realidade e passou a viver tudo o que queria como um avatar.
Enquanto trocava frases com desconhecidos, conheceu muitas histórias de sofrimento, “escutou” e foi “escutada”. “O melhor abraço que me deram foi pela internet. O amor que vinha me deu força”, lembra. Elaine conheceu em redes sociais outras mães de crianças com doenças raras. Num momento de desespero, quando Pedro parou de deglutir por mais de oito horas, foi um pedido de socorro virtual que mudou o rumo dessa história.
Uma das mulheres conseguiu uma consulta no Instituto Estadual do Cérebro do Rio de Janeiro, montou uma campanha de arrecadação de dinheiro e em menos de uma semana levou Elaine e Pedro para lá. Colocou os dois dentro da própria casa. No Rio, Elaine recebeu, enfim, o diagnóstico de Pedro: hemimegalencefalia, malformação congênita definida pelo crescimento assimétrico do cérebro.
A condição requisitava uma cirurgia imediata. Os dez dias iniciais viraram dois meses de acolhida. Foram três procedimentos, dos quais o primeiro durou 10 horas. Ao final, a amiga virtual estava lá para chorar de alegria junto a Elaine. “Meu filho sorri, chora, coisa que nunca havia visto ele fazer. Não tem mais crises. Se não fosse essa pessoa, com certeza, ele estaria morto”, diz ela, que recuperou sorriso, autoestima e força, até para distribuir. Elaine hoje é vice-presidente da Aliança de Mães e Famílias Raras (Amar).
O anonimato que vem da internet
A internet é hoje um canal dessas partilhas. Páginas de Facebook, além de grupos de Whatsapp, estão se configurando como um ambiente de troca de informações. É por meio deles que famílias pacientes com doenças raras descobrem serviços médicos especializados e a melhor forma de lidar com a situação. Ao trocar conversas, algumas abrem um canal de acolhimento que extrapola o virtual.
A psicóloga Raquelline Cavalcanti, 30 anos, tem endometriose. Com dificuldade de encontrar profissionais e informações sobre a doença, começou a fuçar a internet. Encontrou dezenas de pessoas na mesma situação. Sabendo da dificuldade em achar dados sobre a doença, ela decidiu criar uma área em todas as redes sociais. No grupo do Whatsapp, são 54 mulheres apenas de Pernambuco. A vontade de ajudar levou à criação de uma associação. “Você fala com uma pessoa que está sentindo a mesma dor, é diferente. Descobri que não estava sozinha”, diz.
O acesso à informação, para o psicólogo Rafael Matias, é um lado positivo da internet. “O campo virtual serve como uma emergência, pois há alguém ao alcance de um clique”, diz. Por outro lado, ele reflete que nem sempre o sigilo é garantido. A psiquiatra Luciana Paes de Barros também faz a mesma ressalva. “Não se sabe como a outra pessoa utilizará aquelas informações, se são capacitadas e têm maturidade. A internet tem coisas maravilhosas, mas muitas armadilhas.”
Alguns grupos de ajuda mútua também usam o universo online. Todos os dias, uma reflexão dos Emocionais é encaminhada via Whatsapp. O CVV tem um chat online. Já o Alcoólicos Anônimos desenvolveu um chat bot, um sistema automático que conversa com as pessoas e ajuda a identificar características de alcoolismo. A ferramenta dá orientações, auxilia no momento de recaída e, por geolocalização, incentiva os usuários a buscarem reuniões próximas ao local de acesso. A ferramenta aumentou em 1.300% a busca pela irmandade por email e incrementou em 20% o ingresso de novos membros nos encontros.
ENTREVISTA
Luciana Paes de Barros
Psiquiatra e diretora da Sociedade Pernambucana de Psiquiatria
Qual a efetividade dos grupos de ajuda mútua na resolução de dependências e situações de ordem psíquica?
Esse grupos atuam como renovação diária de uma proposta e têm funcionado fortemente. Eles surgiram com os Alcoólicos Anônimos, nos Estados Unidos. Os médicos lá perceberam que pacientes que frequentavam esses grupos, depois de receber alta do internamento, não voltavam a ser reinternados. A recaída era mais relevante naqueles pacientes que não frequentavam nenhum tipo de auxílio. O trabalho desses grupos é para autoconscientização. Eles criam uma espécie de irmandante, onde as pessoas começam a se relacionar independente do sexo, raça, condições sociais. Nada disso é questionado. O que interessa é colocar as questões relativas ao que te levou ali.
E qual a importância da partilha dos depoimentos no processo de superação da própria condição?
Quando uma pessoa relata a história dela, a tendência é se identificar com o relato. É a consciência de que “não sou só eu que sofro desse problema”, “não sou só eu que tenho dificuldade para lidar”. Através da identificação, há o encontro um remédio para manter a abstinência. Existe uma literatura vasta de apoio também. Mas, mais forte que ela, é a presença das pessoas que estão disponíveis para falar de si abertamente e ouvir quem chega.
As pessoas que frequentam os grupos sempre ressaltam como faz diferença ter alguém para lhe ouvir. Estamos vivendo, na sociedade, um momento de crise de atenção. É uma perda de oportunidade de ajudar pessoas com dificuldades emocionais e dependentes?
O contexto da vida hoje vai mais além desse pouco tempo para ouvir. Existe um “pouco tempo” para tudo. A pessoa antigamente recebia uma carta, lia e depois respondia. Isso levava um tempo. Hoje, você recebe mil mensagens por dia e tem que dar conta de responder. É preciso ter cuidado para essas situações não tomarem conta das nossas vidas. A gente tem que saber priorizar as relações. É preciso olhar no olho, estar pessoalmente com as pessoas. Isso faz uma diferença enorme.