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Um conto de duas cidades

História do Recife e Olinda, que fazem aniversário neste domingo, é feita de pioneirismo e fatos decisivos para Pernambuco e o Brasil

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 A história do Recife e de Olinda é a vitrine da grandeza pernambucana. Em quase cinco séculos de existência, as duas cidades acumulam episódios importantes para a formação brasileira e relevantes também em contexto mundial. Antes mesmo de ser considerada Patrimônio Mundial da Humanidade, Olinda já era nome de cometa. A capital do estado não fica atrás em questão de pioneirismo: foi o destino da primeira travessia aérea do Atlântico Sul, há 95 anos. Em homenagem aos 480 anos do Recife e aos 482 anos de Olinda, comemorados neste domingo, o Diario revisita o passado em um guia dos segredos escondidos na memória dos cidadãos, em páginas de livros e nas paredes dos monumentos.

O Recife é a capital mais antiga do país. A “Ribeira de Mar dos Arrecifes dos Navios” de Duarte Coelho e capital do Brasil Holandês comandado pelo Conde Maurício de Nassau esteve na vanguarda histórica em títulos e também feitos. É dela a primeira ponte de grande porte do país e também a primeira ponte pênsil (sustentada por cabos), erguida na Avenida Caxangá no século 19 e arrasada por uma enchente menos de 30 anos depois.

Em um paralelo rápido com o presente, talvez seja até possível justificar a existência de tantas farmácias pela cidade. Há quem garanta que um dos estabelecimentos do gênero mais antigos do país é a Drogaria e Farmácia Conceição, que funcionou na antiga Rua da Cadeia (Bairro de Santo Antônio).

Do céu à terra, Olinda também é sinônimo de pioneirismo e grandeza. Em novembro de 1710, o primeiro grito da república do país e das Américas foi dado no município, pelo sargento-mor Bernando Vieira de Melo - mais de um século depois, as cidades-irmãs seriam protagonistas na Revolução de 1817, responsável por transformar Pernambuco numa república independente que durou 74 dias. A cidade patrimônio também foi referência no advento da modernidade, sendo a primeira do Norte e Nordeste a receber energia elétrica.
Esses são alguns dos exemplos daquilo que se pode descobrir sobre as cidades-irmãs caminhando por suas ruas, lendo as placas turísticas, conversando com personagens incorporados às paisagens e rotinas. O Recife e Olinda, tão cantados e versados, ainda têm o potencial, aos mais de 400 anos, de nascimento de serem um mundo insólito aos seus habitantes.

Wilton, o guardião da memória do Recife

O Recife tinha uma dezena de cinemas de rua e um trânsito pacato quando Wilton Carvalho, 44, começou a desvendar o passado da cidade, ainda aguçado pela curiosidade adolescente de um forasteiro em terras pernambucanas. Adorava visitar os museus em busca de informação. 

Ao longo de três décadas, aperfeiçoou a veia curiosa e nostálgica, colecionando fotografias retiradas de livros e achadas na internet. Wilton é nutricionista por profissão, mas guardião das memórias do Recife de outrora por pura opção. Fortalezense de nascença, recifense de coração. Tem mais de 10 mil imagens, de variados séculos, expostas na página do Facebook Recife de Antigamente. “Foi a cidade que me acolheu”, explica. 

O acervo digital começou a ser formado em 1995, ano em que a internet chegou ao Brasil. As fotografias são armazenadas em HDs e selecionadas para postagens diárias, há quatro anos.  

Quase cinco séculos de informação

Basta dar “dois dedos” de conversa para o estudante de história Edson Ângelo Neto, 34 anos, começar a explicar com uma velocidade impressionante os principais fatos relacionados ao Centro do Recife. Da chegada do Conde Maurício de Nassau, em 1637, à necessidade do poder vigente de levar a cabeça de Zumbi dos Palmares para ser exibida no Pátio do Carmo, está tudo na ponta da língua.

Monitor há dois anos do projeto Recife Sagrado, ele está de segunda a sexta-feira, em horário comercial, na porta da Basílica do Carmo. A função principal é informar os transeuntes e turistas, mas Edson acumula o cargo de referência para habitués das igrejas e proseador para moradores de rua do entorno. O maior sonho sempre foi ser historiador. Enquanto ele realiza os objetivos, os recifenses têm chance de saber mais sobre a cidade. É só chegar na basílica e procurar o rapaz de amarelo. 

Cruzando a urbe seis vezes ao dia

A rotina de Francisco Filho, 59 anos, é sair e entrar no Recife seis vezes ao dia, em média. Motorista de ônibus da Mobibrasil há três décadas, ele é responsável por cruzar os limites municipais trazendo passageiros de Camaragibe para a capital. Nascido e criado em usina, visitou o Recife pela primeira vez adolescente, mas foi a bordo dos coletivos que conheceu a cidade, nas viagens que costumam durar uma hora, ida e volta. 

A primeira linha foi a extinta Carmelo/Cidade. “Era um salve-se quem puder”, lembra.
Francisco é da época em que para amenizar o calor só tinha duas soluções: trazer ventilador ou fazer um apoio de papelão na janela. Hoje, é um dos motoristas de BRT, tem ar-condicionado e até wi-fi dentro do veículo. Mesmo diante da agitação do trânsito, Francisco garante que dá para admirar o Recife. Seus lugares preferidos são as margens do Capibaribe, no Centro.

OLINDA

História e nostalgia que 
ultrapassaram fronteiras

As lembranças da infância nas ladeiras de Olinda, guardadas em caixas e na memória, mereciam ser divulgadas. Pensando em compartilhar as recordações da cidade que colecionou ao longo dos 32 anos, o estudante de história Helton Cezário criou a página Olinda de Antigamente, com mais de 20 mil curtidores no Facebook. Personagens que marcaram a cidade, os carnavais antigos e curiosidades sobre os cartões-postais olindenses são lembrados em postagens diárias acompanhadas de textos que revelam a paixão nostálgica do autor da página. 

Criado na Cidade Alta, Helton criou a fanpage no Facebook em 2013 como uma declaração de amor à Olinda. “Senti a necessidade de resgatar as memórias da cidade onde cresci. Meu principal objetivo é resgatar a história por meio de pequenos textos, que acompanham as fotos”, explica. 

A repercussão ultrapassou fronteiras. Perfis de São Paulo, Estados Unidos, Alemanha e Inglaterra acompanham a página. A maioria é de pernambucanos saudosos da terra natal.

Todos os marcos na paisagem 

Da sala do apartamento onde mora, o dentista Diogo Melo, 31, consegue ver os principais cartões-postais de Olinda. De frente, a orla do bairro de Casa Caiada. De uma janela lateral, o Alto da Sé. De outra, o farol. A vista privilegiada vem do prédio mais alto da cidade, o Edifício Samsara, na Avenida Ministro Marcos Freire. Com 34 andares, o edifício abriga 68 famílias. Apesar de impressionar pela imponência, o Samsara ficaria para trás no ranking de imóveis mais altos caso tivesse sido construído no Recife.

Na capital pernambucana, os prédios mais altos são as torres Jardins da Aurora, em construção na Rua da Aurora, com 45 andares. “Minha esposa (a médica Natália Didier, 30) queria se mudar para os prédios da Aurora, mas a convenci a ficar por aqui. Não troco Olinda por nada”, conta o dentista, que nasceu no Recife, mas se considera olindense

A cidade que passa pela janela

Na Olinda das lembranças da aposentada Arailde Lopes, 92, não havia calçamento nas ruas. Os carros não subiam até o Alto da Sé e, à noite, mulheres e crianças ficavam trancadas em casa, pois as ladeiras escuras eram consideradas perigosas após o pôr do sol. O carnaval passava na porta de casa, mas ela não podia brincar. Observava tudo da janela.

Na adolescência, era proibida pelo pai de sair nos dias de festa. Quando completou 20 anos, casou-se, mas o veto continuou. Dessa vez, estabelecido pelo marido. “Ele era folião de carteirinha. Meus filhos, filhas, netos e netas também amam carnaval. Criaram até bloco”, diz.

Apesar de não ter brincado da porta para fora, dona Arailde, como é conhecida na Cidade Alta, viu a evolução da festa. Ou o declínio, nas palavras dela. “O carnaval tinha marchinhas, desfile de fantasias luxuosas. Hoje é uma bagunça”, critica. 
 

A busca diária pelos siris nas águas do Capibaribe

Figuras de referência em livros históricos, como habitantes de vilarejos em seus primórdios, os pescadores ainda são pertencentes à paisagem do Recife. A modernização alcançou as pontes e prédios ao redor, mas na região do Centro a rotina de pesca remete a um tempo quase paralisado. 

Severino Silva, 54 anos, atravessa a cidade todos os dias e estaciona a tarrafa em cima da Antiga Ponte Giratória, próximo ao Cais de Santa Rita. O trabalho é um complemento ao ofício de marceneiro e também uma forma de descanso. Quando o rio está para peixe, volta para casa com o balde cheio de saúna. O objetivo dele é também pegar siris, cujo destino é a venda em Camaragibe, mas o mais comum é a tarrafa vir cheia de sôia e de lixo, como garrafas plásticas. 

O esforço grande, diz Severino, é compensado pela vista da cidade. Enquanto trabalha, Severino tem o privilégio de admirar a cidade onde nasceu. “Quando o estresse chega, a gente vai ali para o Marco Zero tomar descansar”, brinca. 

A “joia rara” que garante o sustento da família

O ofício foi herdado do pai e do avô. O filho também segue o caminho trilhado por gerações na família. A história é do pescador Antônio Carlos de Melo, 53 anos, mas podia ser de muitos outros da colônia de Rio Doce.  

Todo dia, pela manhã ou no entardecer, Antônio tira a âncora do Joia Rara, um barco amarelo com detalhes em vermelho, e segue para o mar. “Eu não podia dar outro nome. É desse barco que sobrevivo e sustentei quatro filhos. É minha joia rara”, diz sobre o nome da embarcação, que desliza suavemente pelas águas do mar sem ondas. “Os arrecifes cortam as ondas e a gente fica nessa mar tranquilo. É uma bênção”, afirma. 

Da água, ele tira tainha, carapeba e saúna. Quando o dia está bom, vem lagosta. “A natureza é muito generosa. A gente respeita, e ela dá. É do mar de Olinda que eu vivo, então só posso amar minha cidade”, afirma, completando que raramente vai ao Recife. “Tudo que eu tenho tá aqui. Pra que vou pra lá?”, pergunta.