Ninguém está livre de um "colapso" psicológico
O esclarecimento do caso da universitária Vaniela Varela coloca em evidência comportamentos que podem ser desencadeados por situações de estresse e pressão psicológica
O relato acima reproduzido, sobre a difícil experiência de ter um "colapso psicológico", lança luz sobre situações que podem ser vivenciadas por alguém submetido a um alto nível de estresse, pressão ou conflito, e que pode entrar em crise ou surto e tomar atitudes imprevisíveis, como andar sem rumo, paralisar-se, agitar-se, isolar-se, tornar-se agressiva. O desaparecimento da estudante de direito Vaniela Oliveira Varela, esclarecido nesta manhã, parece também servir de ilustração para situações-limite dessa natureza.
"Uma pessoa pode entrar em crise devido a uma questão existencial, a um desequilíbrio, a uma instabilidade do próprio ser humano, após passar por algum impacto, estar diante de uma escolha, conflito familiar ou pessoal, estresse emocional, angústia. É possível uma alteração de consciência, a pessoa pode delirar, perder a noção do tempo , mas não a ponto de uma patologia", explica a psicóloga clínica, domiciliar e hospitalar, Fabiana Nascimento.
A especialista afirma que, nesses casos, a pessoa compensa rápido; ela pode se perder, mas é uma alteração mais branda, com possibilidade de um comportameto mais alterado. "A pessoa pode agredir alguém de quem tenha raiva, procurar tirar satisfação com alguém que lhe causou uma mágoa. Os que ficam depressivos, buscam um local para ficarem sozinhos, têm ideias confusas, mas não perdem contato com a realidade".
Com experiência em casos de crises, a psiquiatra e psicodramaticista Gilvanice Noblat também tem uma visão ampla sobre o problema, ressaltando que é importante descaracterizá-lo como uma doença mental. "Uma pessoa que já apresenta uma patologia mental está mais susceptível a sofrer estresse, como alguém com transtorno bipolar, síndrome do pânico... Esses estresses vão atuar de forma a fragilizá-las mais. No entanto, qualquer pessoa está passível de entrar em crise. Cada um pode parar e se perguntar o que acha que o faria entrar em crise. Uma mãe ou pai poderia dizer, por exemplo, a morte de um filho", argumenta.
Ver um filho suicidar-se, ser assassinado, matar alguém atropelado sem intenção, ser estuprado, receber o diagnóstico de uma doença terminal, ser acusado injustamente de um crime são alguns exemplos elencados pela psiquiatra como possíveis gatilhos. "A gente pode ter uma crise anunciada por causas diferentes, como perda de familiares, situações estressantes, e daí abrir pela primeira vez um surto psicótico. O episódio pode gerar comportamentos diferentes em cada um. Há pessoas que emperram, ficam agitadas, choram, correm pela rua, desmaiam. Cada um vai reagir de uma forma, independentemente de ter uma predisposição. É como num caso de assalto. Todos nós sabemos, cognitivamente, que não devemos reagir, mas nunca sabemos que atitude vamos tomar quando isso realmente acontece. A gente pode ir pra cima do assaltante ", esclarece.
Entre seus pacientes, a psicóloga Fabiana Nascimento lembra de um jovem de 24 anos em crise existencial por conta de um relacionamento afetivo. "Devido a um nível de estresse muito grande, uso de álcool e psicotrópico (rupinol), ele teve alteração de consciência e, com muita tristeza, choro, dor , entrou em um ônibus, sem destino, chegando até o Cabo de Santo Agostinho. Ficou andando perdido pela cidade e foi acolhido pela comunidade. Soube dizer o endereço. Era uma pessoa que vinha com depressão, estava tomando medicamentos. Quando voltou para o processo, não se lembrou de tudo, mas soube contar o que houve na relação. A família precisa se mobilizar, ter uma atenção vigilante. E a pessoa precisa ser tratada", pontua.
De acordo com a psicóloga, não é recomendado insistir e questionar a pessoa sobre o que houve neste período de crise . "Elas geralmente se envergonham, às vezes usam de um personagem. É preciso deixar que a coisa venha naturalmente. Não interessa. O que interessa é o que provocou e como a pessoa está vivendo agora com isso", alerta Fabiana.
Surtos
Diferente dos casos de crise, os surtos de ordem patológica têm pouca ou quase nenhuma relação com o acontecimentos existenciais, estando mais ligados à ordem metabólica, biológica, neurológica, fisiológica, genética, às alterações do corpo, sem esquecer o lado psicológico. "Surto é uma crise aguda da ordem da patologia mental. É alguma coisa que aparece de uma forma aguda ou reincidente, um sentimento de estranheza, que vai ter outros componentes", pontua Gilvanice.
A especialista exemplifica citando casos de alucinação, motivados por causas neurológicas ou abstinência de drogas. "É uma causa metabólica, sem ter relação direta com o lado psicológico, não tem um fator existencial que justifique esse conteúdo". A psiquiatra acrescenta outras situações podem acontecer na esquizofrenia e no transtorno bipolar, como a pessoa ficar elétrica, falar demais, gastar, transar demais, se sentir 'o dono do pedaço', ir a uma fase de euforia que não corresponde à vida real. "Já as crises da ordem do existencial têm relação com o fator desencadeante, afetam a pessoa de forma mais inesperada, mas não tem como generalizar", diz.
Gilvanice Noblat já teve entre seus pacientes epiléticos que chegaram em uma outra cidade, mas não souberem como fizeram o percurso. "Eles têm um tipo de convulsão que não é a clássica, uma alteração do nível de consciência e andam sem rumo. Quadros neurológicos como degeneração cognitiva da demência, epilepsias ou outros podem causar amnésias. As pessoas podem sair e não saberem como voltar para casa. Pessoas sob efeito de grande estresse emocional podem ter um quadro dissociativo e reagirem dessa mesma forma. Na esquizofrenia e transtorno bipolar, elas não perdem a memória e têm o registro do que aconteceu. Pessoas sob forte emoção podem se desorientar, dissociar, mas com ajuda terapêutica podem reconstituir esse processo", afirma.
A psicóloga Fabiana Nascimento ressalta, ainda, que o surto é uma patologia que pode acontecer a partir de uma crise existencial, com uma quebra total com a realidade e precisa ser tratado com medicações e vem associado a delírios, perda de memória, fala sem sentido, alucinações. "A pessoa pode sair pela rua e se perder mesmo. Ela perde o contato com a realidade, não sabe de onde veio , para onde vai e muitas vezes a aparência não identifica isso, não mostra uma descompensação. Pode perder o pudor, ser agressivo ou ter uma postura de depressão, de desencontro, ficar fora de si. Ele não está buscando nada, segue sem objetivo".
Fato similar aconteceu com um paciente de histórico patológico. Alterado, insatisfeito com a relação conjugal, ele começou a mudar de comportamento e entrou em surto no dia em que a esposa demorou a chegar da faculdade. Quebrou objetos da casa, os dois discutiram e ele saiu pela rua. Foi agressivo, tirou as roupas e foi contido pela sociedade e levado a uma emergência psiquiátrica, onde foi utilizada medicação. Em seguida, foi levado ao psiquiatra de referência. "Hoje, o internamento é evitado, a compensação vai acontecendo e as questões são trabalhadas para se evitar um novo surto", pontua.
Caso Vaniela
Com comportamento sempre considerado exemplar, formada em Administração, com diploma de MBA em Gestão de Pessoas pela UPE e no terceiro período de direito na UFPE, Vaniela Oliveira Varela não queria ser encontrada, queria ficar sozinha. Em depoimento à delegada do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), Gleide Ângelo, a universitária de 25 anos, disse que estaria passando por uma situação de pressão, por problemas pessoais, familiares, psicológicos. "Ela falou que tinha acordado com uma vontade de desaparecer. Não procurou a polícia, não sabia da repercussão".
Nos quase quatro dias em que ficou sem comunicação com a família, Vaniela permaneceu sozinha, no quarto de uma pousada simples na praia de Tambaú, na Paraíba, segundo ela, único lugar para onde havia viajado na vida e para onde saberia ir. A estudante detalhou que só saía à noite, para andar na areia da praia. Com saudades da avó, com quem mora no bairro do Ibura, no Recife e com "peso na consciência" teria resolvido voltar pra casa.
Ainda segundo a polícia, na quarta-feira da semana passada, Vaniela contou ter acordado com a vontade de sumir. Por volta do meio dia, quando saiu do Fórum de Jaboatão, atravessou a BR-101 e teve a ideia. Pegou um ônibus para o Barro, entrou no metrô e depois foi para o Terminal Integrado de Passageiros (TIP), no Curado. De lá, a estudante teria seguido de ônibus para a Paraíba, ficando hospedada em uma pousada na praia de Tambaú. Disse que escolheu o local pelo preço de R$50 (durante o trajeto havia sacado R$400 em um caixa eletrônico). Na noite do sábado, resolveu fazer exatamente o caminho de volta até chegar a BR, onde ficou chorando até ser vista por uma mulher, que a acolheu e entrou em contato com a família, que a reencontrou por volta das 22h. A preocupação terminava, mas a polêmica estava apenas começando.