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Projeto que barra despejo durante a pandemia é elogiado por especialistas

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Em plena pandemia, a Justiça brasileira nunca foi tão célere para julgar ações de despejo e reintegração de posse, colocando famílias em dificuldade financeira e em condições precárias de moradia na rua da amargura. Essa velocidade nas decisões, inclusive, tem chamando a atenção de especialistas em direito e de parlamentares ouvidos pelo Correio. Segundo eles, mais de 9 mil famílias já foram despejadas no ano passado e, neste ano, cerca de 64 mil grupos familiares correm o risco de serem retirados de suas casas, sejam de ocupações em áreas privadas ou públicas, sejam de residências alugadas, o que pode agravar o quadro da Covid-19 no país.

Um alento para essas pessoas que estão em situação de vulnerabilidade foi a aprovação pela Câmara dos Deputados do projeto de lei que proíbe ações de despejos durante a crise sanitária, o PL 827/2020, na última quarta-feira (18). A medida, apesar de tardia, é elogiada e considerada importantíssima para garantir o mínimo de dignidade aos mais pobres, sem amparo do governo federal, que, desde o início, classificou a pandemia de “gripezinha” e hoje é alvo de investigação da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Senado Federal.

O PL 827/2021 relatado pelo deputado Camilo Capiberibe (PSB-AP) e encaminhado ao Senado aglutina mais de 20 projetos de partidos da direita, do centro e da esquerda. Enquanto isso, vários países já adotaram medidas evitando despejos durante a pandemia desde o ano passado. Estados Unidos, Espanha e Argentina são alguns exemplos citados pelos analistas.

De acordo com o projeto, as ordens de despejo não poderão ser efetivadas até 31 de dezembro de 2021. E, para garantir o benefício, o locatário precisará demonstrar a incapacidade de pagamento em razão da pandemia. A medida valerá somente para contratos com valor do aluguel de até R$ 600, para imóveis residenciais, e de até R$ 1.200 para os não residenciais. As regras não se aplicam para ocupações ocorridas após 31 de março de 2021.

“O projeto veio em boa hora, mas está atrasado há mais de um ano”, comenta a doutora em Direito pela Universidade de São Paulo Bianca Tavolari, professora do Insper e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). “A proposta é muito importante, porque é um assunto que trata sobre o direito à moradia em um momento de pandemia e, portanto, é também um assunto de saúde pública. Uma das principais medidas de isolamento é ter uma casa. E se as famílias são expulsas de seus respectivos lares enquanto a Covid-19 não estiver controlada, haverá um aumento inevitável de contaminação”, alerta.

Levantamento feito por Bianca Tavolari, com base nos dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2018, mostra que quase 50% das 11,7 milhões de famílias que pagam aluguel têm renda familiar total de até três salários mínimos e 5,8% das famílias de baixa renda depende da receita com aluguel. “As pessoas que ganham até dois pisos salariais e vivem de aluguel são uma pequena parcela da população e poderiam muito bem ser socorridas pelo governo, a fim de não prejudicar a maioria que corre o risco de ser despejada”, defende.

De acordo com a professora, chama a atenção a rapidez dos julgamentos na Região Metropolitana de São Paulo e, olhando para a argumentação de juízes e juízas, apenas 4,63% de 12.478 casos analisados fazem referência à pandemia. “O Judiciário menciona nos autos a pandemia apenas realizar audiências não presenciais ou para proteger o oficial de Justiça, que acaba não entregando a intimação ao inquilino, que fica sem ter espaço para a defesa”, critica.

Pedido de celeridade
O relator e os autores do PL 827/2021 pretendem conversar com o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), nesta semana, a fim de pedir celeridade na tramitação da proposta, porque ela vai disputar atenção com a CPI da Pandemia que ocorre na Casa. “As ações de despejo estão ocorrendo em todos os lugares do país. E esse é um problema que ameaça mais de 64 mil famílias. Esse projeto tem 21 apensados, pois não era uma preocupação apenas da esquerda. Ele abrange todo o espectro ideológico de parlamentares, de vários partidos. A proposta demorou para andar na Câmara, mas o plenário aprovou, porque o assunto é importante e superou as questões partidárias”, afirma Camilo Capiberibe.

Uma das relatoras do PL 827/2020, a deputada Professora Rosa Neide de Almeida (PT-MT), reforça que o objetivo da proposta é focar na população de baixa renda, a fim de contribuir para uma maior dignidade às famílias que têm poucas condições para se proteger contra a Covid-19. “Temos despejos no Brasil inteiro, na cidade e no campo. No meu estado, por exemplo, tem muitos casos de pessoas sendo despejadas de área pública em plena pandemia. E essas famílias acabam sendo colocadas juntas em áreas comuns e todos acabam pegando Covid-19 ao mesmo tempo”, justifica. “Casa é um lugar sagrado e as pessoas não podem ser tiradas delas em um momento em que a pandemia não está controlada”, acrescenta.

Ricardo Pantin, advogado e especialista em direito constitucional, reforça que a moradia é um direito básico, assegurado na Constituição e elogia a aprovação do PL 827/2020 pela Câmara. Ele ressalta que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou uma recomendação, em fevereiro deste ano, aos órgãos do Judiciário para que, enquanto durar a pandemia, sejam especialmente cautelosos no deferimento de liminares de despejo. Destaca ainda que o relator especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para o direito à moradia, Dr. Balakrishnan Rajagopal, também declarou medidas sem perspectiva de realocação “conflita diretamente com as medidas de contenção da pandemia de Covid-19”. “A pandemia atingiu os mais variados setores da sociedade, principalmente, os mais vulneráveis social e economicamente, que tentam sobreviver num cenário econômico e sanitário caótico. As reintegrações, remoções e despejos, frente a essa situação, caracteriza total desrespeito à dignidade humana e aos direitos básicos de saúde e moradia, além de contribuírem para intensificar os riscos de contágio e o colapso da saúde em todo o território nacional”, completa Pantin, lembrando que até o Supremo Tribunal Federal (STF) já decidiu contra a remoção de comunidades indígenas durante a pandemia.

O advogado especialista em direito civil Gustavo Kloh, professor da Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro (FGV-Rio) considera o PL 827/2021 positivo, mas acredita que a regra só deveria tratar de aluguéis residenciais. “A lei é muito boa, mas tem uma arapuca ao ser muito genérica, incluindo a atividade produtiva, puxando para o lado de aluguéis não residenciais. No interior, muitos imóveis comerciais são alugados por menos de R$ 1,2 mil e isso pode gerar problemas aos proprietários que sobrevivem da renda desses imóveis comerciais”, argumenta.

A professora do Insper, Bianca Tavolari, reforça ainda que a preocupação com o despejo no meio da pandemia tem, inclusive, mobilizado artistas internacionais, como a cantora Beyoncé. No fim do ano passado, decidiu conceder apoio financeiro de US$ 5 mil por família na iminência do despejo nos EUA. “O gesto alia uma ação filantrópica à denúncia da pouca ação de políticas governamentais nesse campo durante o governo Donald Trump”, afirma.

Sérgio Francês/Divulgacao

As ações de despejo estão ocorrendo em todos os lugares do país. E esse é um problema que ameaça mais de 64 mil famílias. Esse projeto tem 21 apensados, pois não era uma preocupação apenas da esquerda”, deputado federal Camilo Capiberibe (PSB-AP), relator do PL 827/2020.

No DF, desocupações são frequentes
Enquanto alguns estados já possuem leis para evitar despejo na pandemia, como o Rio de Janeiro, ou procuram aprovar, como São Paulo — onde a Assembleia Legislativa avalia uma proposta parecida da deputada Leci Brandão (PCdoB) —, o Distrito Federal segue demolindo barracos e promovendo ações de desocupações.

A mais recente ocorreu na sexta-feira (19), em uma segunda ação de reintegração de posse de uma área próxima ao Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), aproveitando decisão favorável concedida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), na contramão da recomendação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e da Organização das Nações Unidas (ONU) que orientam a não autorização de despejos durante a pandemia. Em abril, o GDF realizou medida semelhante no mesmo local.

Uma das vítimas da remoção do CCBB foi a catadora Fabiane Silva, 30 anos, que sempre trabalhou com reciclagem. Natural de Barreiras (BA), chegou ao Distrito Federal há 16 anos e residia na ocupação com os três filhos e o marido. “É preocupante, está bem difícil, ainda mais na pandemia, nós aqui estamos enfrentando muita luta, principalmente, com a falta de mantimentos como água e alimentação”, reclama. Outra desalojada foi Débora Santos, 29 anos, também catadora. Natural do Rio Grande do Norte (RN), ela veio para o DF em busca de emprego e morava sozinha na ocupação há seis anos. “Eu vim para trabalhar, porque onde eu morava era muito difícil arrumar trabalho”, conta. “É muito triste essa situação de despejo, principalmente, para as outras famílias com crianças pequenas e adolescentes aqui nessa situação. É desumano como nos tratam. Os agentes nos oprimem diariamente e eles levaram até o meu carro de trabalho e agora não tenho como me sustentar”, lamenta.

Questionado sobre essa nova decisão favorável ao GDF para despejo, o STJ informou, por meio da assessoria, que os ministros do tribunal “decidem com base em informações constantes dos autos” e “não comentam suas decisões fora dos autos, especialmente, de casos ainda em tramitação, com base na Lei Orgânica da Magistratura”. Já a Secretaria de Desenvolvimento Social do GDF e o DF Legal, por sua vez, justificaram a ação porque ela está amparada “na reversão de uma liminar que impedia a derrubada dos barracos”. “A área situada próximo ao CCBB passa por manutenção e, no local, será feito replantio de mata nativa, que foi destruída ao longo dos últimos 20 anos.” Segundo o GDF, foram recolhidos três caminhões de entulhos e cinco barracas de camping do local e foi oferecido abrigo aos desalojados. “A secretaria DF Legal disponibilizou transporte para os pertences, mas as ajudas foram recusadas pelos ocupantes do local.”

A professora da faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília, que trabalha com a pauta do direito à cidade, à água e ao saneamento em ocupações urbanas, reconhece que os casos de despejos no DF são frequentes e consequências da realidade social do planejamento urbanístico da capital federal. “Os candangos que vieram construir Brasília se alojaram nos canteiros de obra antes da inauguração. Foi uma luta para essa população permanecer no centro. Muitos foram removidos e levados para cidades satélites, como Ceilândia. Ou seja, com 10 anos de formação da cidade, as pessoas já foram despejadas”, explica.

A urbanista conta que, conforme levantamento da Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitação (SEDUH), existem 508 ocupações irregulares no DF, o que dá mais ou menos 45 mil lotes e 157,3 mil habitantes sem acesso à água e a saneamento em plena pandemia. E, inclindo as áreas de relevante interesse social (Aris), “esse número pode chegar a 422 mil pessoas”.

*Estagiárias sob a supervisão de Rosana Hessel