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João Maurício Adeodato: "O Brasil nunca teve paciência com a democracia"

Prestes a se aposentar da Faculdade de Direito do Recife, professor poderia criar sua própria teoria sobre o país

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João Maurício Adeodato é professor de Introdução ao Direito da Faculdade de Direito do Recife (UFPE). Foto: Teresa Maia/ DP
Prestes a se aposentar da Faculdade de Direito do Recife (UFPE), onde começou como professor substituto em 1983 e hoje é titular de Introdução ao Direito, João Maurício Adeodato, 59 anos, bem que poderia criar sua própria teoria de Brasil. De um país que, de acordo com ele, pode se tornar uma referência mundial desde que respeite a democracia. No momento em que enfrentamos uma de suas piores crises econômica e política, o professor analisa o cenário de forma fria, mas esperançosa. Doutor pela USP e pós-doutor pela Universidade de Mainz (Alemanha) e orientador de mais de uma centena de teses de doutorado e dissertações de mestado, João Maurício defende que em países de democracia recente, como o nosso, ainda é possível existir dificuldades no fortalecimento de instituições e a convivência com a corrupção na máquina pública. “A história do Brasil é uma sucessão de golpes e fracassos políticos desde a independência até hoje. Quando a democracia vai engatando, aí vem um golpe”, enfatiza. Na sua visão, se o país tivesse continuado sob o regime democrático desde o governo de Juscelino Kubitschek, estaria no mesmo patamar de nações como a Coréia do Sul, considerada uma potência no continente asiático. Na entrevista ao Diario, o professor e autor de vários livros faz uma avaliação das ações recentes do Judiciário brasileiro, que têm chamado a atenção da sociedade, e revela sua opinião a respeito do impeachment da presidente Dilma Rousseff.

Existe hoje uma demanda maior da sociedade pelo direito?
Sem dúvida. Isso é uma das demandas da democracia. O Brasil nunca teve paciência com a democracia. A história do Brasil é uma sucessão de golpes e fracassos políticos desde a independência até hoje. Quando a democracia vai engatando, aí vem um golpe. E, infelizmente, na maioria das vezes, apoiado pelo próprio povo. A democracia é uma forma de governo que precisa de tempo. Ela precisa solidificar instituições. O que nunca aconteceu no Brasil. Vamos pensar em algo mais recente: Juscelino (Kubitschek). A democracia de Juscelino certamente era corrupta. Toda jovem democracia é corrupta desde a Grécia Antiga. A democracia só vence a corrupção com o tempo. Uma ditadura como a de Hitler pode começar sem corrupção. Em uma democracia, eu não conheço nenhum caso. Toda jovem democracia, repito, é corrupta. Com o tempo, ela desenvolve as instituições e elimina essas coisas (corrupção), como acontece nas democracias maduras, como a alemã. Se a gente tivesse tido paciência com Juscelino, não tivesse havido o golpe de 1964, a democracia tivesse vindo dos anos 1950 até hoje, eu tenho certeza que o Brasil estaria muito melhor. Eu sou um democrata radical. Porque eu não acredito no poder. A coisa que mais deturpa a antropologia humana é o poder. Não é o dinheiro nem o sexo. Esses são apenas formas de demonstrar poder, caminhos para o poder. Hitler, por exemplo, era incorruptível. Ele não queria saber de dinheiro. Por que? Porque ele queria o mundo todo. Para que ele queria dinheiro? R$ 1 milhão, R$ 2 milhões… isso é coisa de corrupto pobre, corrupto que a gente vê por aqui, que se vende. Mensalinhos, mensalões, petrolões. O poder é muito mais que isso. E o poder corrompe, desde o micropoder. Até o poder de condomínio. Por isso que eu sou a favor da mitigação, pulverização radical do poder. Eu me considero uma pessoa de extremíssima esquerda. Não sou PSol, PSTU, não. Eu sou contra a profissão de político. Eu sou contra qualquer reeleição. Até para síndico de prédio.

Mas existe algum modelo pronto de democracia para o Brasil? Existe alguma experiência história que poderia ser transplantada para o país?

Nós temos que achar o nosso próprio caminho. Não é possível transplantar uma experiência histórica. Eu sou a favor do parlamentarismo, de um Congresso forte, um Judiciário forte, um Ministério Público forte, justamente para fiscalizar esses desmandos que estão por aí. O que o Brasil precisa é ter paciência com a democracia. Eu me tremo todo quando vejo as pessoas pedindo a volta do autoritarismo. Querer isso é muita ignorância, falta de visão. Isso é um horror. Tem que ter democracia com o poder desconcentrado. Sou a favor do parlamentarismo, da Federação, dos estados fortes, de bairros fortes, ruas fortes, associação de rua, não de bairro. O Brasil é um caos porque os filtros democráticos no país estão completamente errados. Eu sei que o brasileiro não é um povo exatamente honesto. Eu tenho vergonha. Mas eu diria que os brasileiros canalhas são em torno de 30% enquanto os políticos canalhas são 95%. Então, está havendo algum problema nos filtros democráticos. Porque o político deve corresponder ao povo. O brasileiro, apesar de ser incompetente e canalha, não é tão incompetente e tão sem ética quanto seus políticos. Corrupção é um problema ético, mas a gente esquece que esses caras são uns analfabetos em termos de gestão. Por que o político fez a avenida e ela agora está cheia de buracos? Ele tem que pagar. Tem que entrar no dinheiro privado dele. Tirar a casa dele na praia para pagar aqueles buracos que ele fez ali. E eu não vejo ninguém do PSol, do PSTU, do PT, dos partidos que se dizem de esquerda fazendo alguma coisa. Por isso que eu digo que sou radical de esquerda, de extremíssima esquerda.

Qual é a sua opinião sobre a condução coercitiva  de Lula?
Eu não acho que seja exagero (o depoimento). Aí depende da interpretação. A lei dá margem a esse tipo de interpretação. Eu acho que o juiz Sergio Moro é a pessoa competente para interpretar a lei. Ele e o Ministério Público interpretaram e concordaram. Se Lula não está gostando, vá procurar um advogado para punir o Ministério Público, punir Sergio Moro porque eles foram arbitrários. O que eu quero dizer filosoficamente é que esses exageros são naturais das sociedades humanas. Eu vi um cara falar uma coisa certa: ‘Triste do país que precisa de heróis’. Eu concordo. Mas esse país é um país triste. Ele precisa de heróis. É melhor um herói como Sergio Moro do que ninguém. Eu confio nessa geração de procuradores, de promotores jovens, de 35 anos, 40 anos. A gente precisa de jovens. Se todos fossem como eu, o mundo não dava certo. Eu sou um velho filósofo, sou cético. É natural essa renovação. Eu apoio totalmente. A minha opinião pessoal não conta muito, mas eu acho que muita gente se locupletou. Muita gente está sem educação, sem hospital. Eu prefiro um ladrão que está na rua e assalta você, porque tem mais coragem, do que esses caras, cujos nomes não vou citar. Esse povo todo do Legislativo, do Executivo e do próprio Judiciário que são responsáveis pelas mortes de crianças e velhos porque não há estrutura nos hospitais. Contra essa revolta, tem que ser duro. Haverá exageros, haverá… mas como eu lhe digo: é um processo natural. Democracia é isso. Tem gente que acha que deveria prender logo e tem gente que é contra a condução coercitiva. Há um problema muito grande nesses políticos que é o partidarismo. Eu acho que, como todas as instituições brasileiras, os partidos políticos são tristes, são incompetentes e antiéticos. Eu não acredito nos partidos e, quando vejo essas pessoas, eu penso num time de futebol. Uma espécie de loucura coletiva. Os lulistas pensam em defender Lula, ninguém pensa em defender o Brasil. Dizem: ‘é meu Deus, meu ídolo’. Lula não é Deus nem o diabo. Lula é um pobre coitado, que estava no lugar certo, na hora certa. Em outro país, ele não teria sido presidente.

Recentemente, o STF se posicionou pela ilegalidade da posse do novo ministro da Justiça, Wellington César Lima e Silva, por ele ser procurador no estado da Bahia, mesmo licenciado. No seu entendimento, ele poderia assumir o ministério sendo procurador?
O texto da lei dá margem as duas interpretações. Neste caso, tem que prevalecer o entendimento do Supremo. Agora, se você pergunta sobre a minha opinião do ponto de vista moral, eu sou contra. Para você ver como é o Brasil: os advogados, os procuradores de estado estão fazendo ‘lobby’ para poderem advogar e receber o que se chama de sucumbência. Digamos, você é advogado do estado e, se a causa for muito grande e você ganhar, você recebe uma parte do ganho como se fosse advogado privado. Eu escrevo para meus amigos estrangeiros e digo isso e eles ficam de queixo caído. Eu acho que funcionário público tem que ser pobre e ter dedicação exclusiva. Quem quiser ser rico vá para a iniciativa privada.

Quando o senhor fala em ‘ser pobre’ se refere a uma vida franciscana?

Não, não… Eu acho que o procurador deve ganhar um salário digno, de uma alta classe média, poder viajar para adquirir cultura. Na verdade, eu acho que todo mundo deveria ganhar bem, mas o dinheiro é curto. Agora, querer ser rico no serviço público, como se fosse um empresário, um advogado privado, não pode.

Qual a sua opinião sobre o direito na atual sociedade brasileira?
Eu acho fundamental porque o direito é o mínimo ético. Ele tem duas qualidades. Primeiro, ele tem o mínimo de moral. Você não precisa ser um santo para estar de acordo com o direito. Mas você tem que ter o mínimo de moral. A base dá ética é o direito. Depois, o direito obriga quem não quer a andar na linha. A moral não obriga. A religião não obriga. Nós temos um nome para isso: coercitividade. O direito é o único plano ético que, se você não cumprir, vai sofrer. Sofrer no seu bolso, na sua integridade física. Você sabe que o direito em alguns lugares tortura e mata. Isso é legal, inclusive nos Estados Unidos, que não considero desenvolvido, mas que muita gente considera. Eu acho os Estados Unidos um país subdesenvolvido rico. E o Brasil é um país subdesenvolvido pobre. Essa é a diferença.

O senhor acha que o impeachment de Dilma tem legalidade?

Em primeiro lugar, se ela for afastada, quem vai entrar no lugar dela? Então, eu digo pragmaticamente que é melhor não afastar. Não impedir. Porque o que vem atrás, já que nós não temos instituições, é pior do que ela porque não tem o mecanismo do voto popular. Pelo menos isso ela tem. Agora, em um país decente, moralmente decente, ela merece o impeachment. Ela, além de antiética, é incompetente. Ela e a turma dela. Se você me perguntar em termos absolutos, merece. Agora, se eu fosse um ministro do Supremo ou um deputado, eu votaria contra o impeachment. Por causa das consequências. Eu pensaria pragmaticamente e não moralmente. Filosoficamente, sim. Pragmaticamente, não. Existem elementos jurídicos para o impeachment, mas quem merece cadeia não é só o antiético. O incompetente também merece. Tem que responder. Eu acho que ela causou muito mal.