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José Paulo Cavalcanti Filho: o Recife e a Segunda Guerra

O cenário desses episódios é um Recife ainda organizado. Sem o crescimento caótico que viria depois

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Por José Paulo Cavalcanti Filho
Jurista
jp@jpc.com.br

O que é a história? Fernando Pessoa entendia sua importância com reservas. Segundo ele, seria só “a memória inútil da memória”. Voltaire a via com um certo cinismo: “A história não é mais que um retrato de crimes e infortúnios”. Virginia Woof, com uma certa resignação: “Nada realmente aconteceu até ser recordado”. Definições não faltam. Mas prefiro ficar com a de Jacques Attali, para quem seria uma “aventura humana”. 

Talvez uma compreensão mais adequada; que afinal a história é mesmo, e sobretudo, obra dos homens. Bela, grandiosa, repugnante ou triste, não importa. Assim seja, pois. Essa breve reflexão vem a propósito do monumental O Recife e a II Guerra Mundial (Ed. Bagaço, já na 3ª edição em 2015); em que Rostand Paraíso, com sua reconhecida competência de memorialista, escreve dois relatos ao mesmo tempo. Entrelaçados. Um por dentro do outro.

Primeiro a guerra, com seus horrores. Os personagens principais. Os fatos marcantes numa sequência cronológica, de 1940 a 1945. A extensão das operações aos Balcãs e ao Nordeste da África. O Brasil na guerra. Balanceando, esse relato, com algumas graças (nem sempre críveis) desse tempo. Como o presidente dos Estados Unidos, Harry Truman, saudando o nosso: How do you do, Dutra? Com o general lhe respondendo, bem sério, How do you tru, Truman? Ou esse mesmo general chegando em Washington, vendo a faixa Wellcome Dutra e mandando seus auxiliares preparar uma resposta - Dutra também come Well. Um pouco de humor em meio a tantos mortos.

Depois, a guerra vista a partir do Recife. O Brasil entrando no cenário de operações. O papel da FEB. O impacto da morte de Roosevelt. A tentativa de ouvir a BBC de Londres. A invasão da cidade por jipes com militares a bordo e um festival de palavras inglesas na praça - copy-desk, office-boy, cock-tail, up-to-date, black-tie, black out, por aí. Tudo com muitas, e majestosas, reproduções do Diario de Pernambuco, do Jornal do Commercio e da (saudosa) Folha da Manhã. Sem esquecer relatos duvidosos. Como aquele em que um conhecido jornal pernambucano repreende Adolf Hitler: Nós avisamos tantas vezes, para que nos desse ouvidos. Não invada a Rússia!

O cenário desses episódios é um Recife ainda organizado. Sem o crescimento caótico que viria depois. Uma cidade provinciana que, segundo o Recenseamento Geral de 1940, tinha só 350 mil habitantes. Onde ainda se via o footing da Rua Nova, as festas do Clube Internacional, o Repórter Esso, a Fratelli-Vita, os carros a gasogênio, os carnavais com lança-perfumes, um tempo em que “todo gordo quer emagrecer” e “todo magro quer engordar”, os aviões que estacionavam no Rio Capibaribe - onde, um dia, foi a Mesbla Náutica. Com fotos desse Recife que passou. E personagens que sobrevivem apenas em lembranças. Tudo bem distante dos dias de hoje. Um Recife melhor ou pior, não importa, só diferente.

Rostand nos faz viver a II Grande Guerra, nesse livro, a partir de uma visão afetiva sobre sua cidade. Um território que hoje se confunde com infância. Lugares e rostos do passado. Esse o maior mérito do livro. O especial dom de fascinar quem viveu aquele tempo, olhando com tristeza para o que não existe mais; e, também, o especial dom de fascinar quem não conheceu nosso passado e tem saudades dele. Sem contar a vantagem enorme que é ver essa trajetória contada por mãos competentes. Em síntese, um livro imperdível. Com o rigor histórico, o sentimento do que é verdadeiramente importante e a delicadeza de que só grandes escritores são capazes de produzir.