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Esqueça o Filme
No Festival de Tiradentes, a estreia do filme A Primavera é eclipsada pelas escolhas de um de seus criadores; moralismo juvenil restringe o debate da obra de arte
Esqueça o filme. O debate se centra em garantir a fala a uma das pessoas presente à plateia, uma diretora de arte que sequer assistiu ao filme inteiro e se deu ao trabalho de se locomover ao espaço de debates da Mostra Tiradentes de Cinema, realizada nesta semana. Nada tão irrazoável: as críticas não eram para o filme. A situação pontua com clareza a questão: é possível separar a obra do seu realizador?
O que estava em julgamento era a participação do codiretor Daniel Aragão como diretor de fotografia no documentário sobre Olavo de Carvalho, o já falecido astrólogo e líder filosófico do bolsonarismo, em 2015. Daniel, por sua vez, irascível, não ajuda e bota lenha na fogueira.
A discussão poderia ter ido por outro caminho. O debate deveria ser sobre o filme A Primavera, selecionado para a mostra Olhos Livres do festival. A Primavera se passa no Recife, ironicamente uma terra de sol e chuva, inverno e verão, onde as estações são polarizadas. A “primavera” é um ideal poético e político, mas também representa a fachada abandonada de um prédio da cidade. Várias décadas atrás, ali funcionou um famoso magazine. Memória inscrita de um progresso que não perdurou. Como disse Levi-Strauss, ao descrever nossa realidade melancólica: parece que saímos da barbárie para a decadência, sem antes passar pela civilização.
A Primavera é sobre uma distopia urbana, social, econômica e também filosófica. O filme busca trabalhar a temática em varias camadas, expondo a situação de vulnerabilidade nas ruas, associando isso à vulnerabilidade da classe artística, e devaneia a superficialidade de um romance a caminho de duras realizações. Perdida entre o filme em si e o foco em um de seus criadores, a crítica não consegue somar as peças.
Em outro nível, o filme trata do lugar central do dinheiro na sociedade, indo muito além de mero meio de troca, mas como definidor do “real” em espectros mais amplos, do fetiche ao místico com sua hybris faustica. Daí o transe obsessivo e o caráter alucinatório que impulsiona o filme.
De forma pretensiosa (e digressiva), eu sei, faz perambular pela cidade personagens da filosofia e antropologia como Hegel e Claude Levi-Strauss. Traz até a morte de um deus desumanizado como indigente. Central e vigorante é a presença de poetas da cultura marginal como Odailta Alves, Marlon Silva e Ana Rebeca (Aroante) e a merecida homenagem a Miró da Muribeca.
Mas nada disso pode ser discutido. Todos esses elementos passam despercebidos. A atitude desdenhosa de Daniel em face a um moralismo juvenil, limitou o espaço. O estranho é que, após o debate, nas conversas de pé de ouvido, alguns dos mesmos tecem comentários elogiosos ao filme em si.
O banquete sacrificial serve pra purificar a comunidade, reforçando a unidade de um grupo, renovando a aliança entre seus membros, servindo a polarização e a cultura de cancelamento que se expande por todos os redutos da cultura.
De tal modo se movem as manadas humanas nessa realidade digital. Para não dizer matilhas, como pontua um dos personagens do filme, ao citar Camus: “O homem é o cachorro do homem, poeta”.
*É cineasta