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"Aquilo era o inferno e eu queria morrer", diz brasileiro que sobreviveu a ataque do Hamas em Israel

Rafael Zimerman está no Recife para contar situação dramática que viveu dentro de um bunker em um deserto em Israel

Rafael Zimerman

Formado na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, aos 27 anos, ele virou parte de um capítulo sangrento da história do conflito entre Israel e os terroristas do Hamas.

Rafael e amigos brasileiros estavam no festival Universo Paralello-Supernova, organizado no meio do deserto israelense. Naquela manhã, os extremistas, fortemente armados, invadiram a rave, em meio a uma pregação de paz, e deixaram ao menos 260 mortos. Jovens de várias partes do mundo acabaram sendo executados.

Sobrevivente de um dia sangrento, Rafael Zimerman, atualmente, conta a sua experiência em eventos organizados em escolas. Na capital pernambucana, Zimerman tem uma programação que inclui também uma palestra para a comunidade israelita, em local e horário não divulgados por uma questão de segurança.

Na entrevista ao Diario, o jovem paulista, que deixou o Brasil para "mudar de vida" e estava trabalhando como garçom em Israel, faz uma narrativa precisa e cheia de imagens, capazes de chocar até os mais incrédulos. "Eu vi uma pilha de corpos sendo queimados na entrada do bunker. Invadiram um cubículo que tinha capacidade para 15 pessoas e onde estavam 40. Eu senti o cheiro da morte", declarou.

A festa
 
A festa da qual Rafael e os amigos participavam foi realizada em um deserto, a menos de 20 km da Faixa de Gaza, território palestino, na mesma hora em que teve início o ataque surpresa do grupo Hamas.

O festival de música eletrônica foi criado pelo pai do DJ brasileiro Alok, Juarez Petrillo, conhecido como DJ Swarup. O evento coincidia com o feriado judaico de Sucot (também conhecido como "Festa dos Tabernáculos" ou "Festa das Cabanas"). Também brasileiro, um dos amigos que estavam com Rafael não conseguiu escapar. O gaúcho Ranani Nidejelski Glazer, de 23 anos, foi a primeira morte confirmada pelo Itamaraty. Além dele, Rafaela Treistman, namorada de Glazer, sobreviveu. 


Como tudo começou
 
Rafael conta que foi para a rave por "ser uma festa de brasileiros". "Fui com um amigo, o Ranani Glazer, o menino de Porto Alegre, e a namorada dele na época, Rafaela". No relato, Rafael Zimerman enfoca, de início, onde estava no momento em que a vida dele começaria a mudar radicalmente, às 6h29, de 7 de outubro de 2023.

"Eu estava sozinho, na frente do palco, dançando. O Ranani e a Rafaela tinham ido ver uns quadros que havia. Eu sempre comento que essa festa era muito sobre coexistência, sobre paz. Uma festa que tinha 3 mil pessoas do mundo inteiro, de todas as religiões. E, realmente, esse era o sentimento na festa".

Em meio a esse clima de diversão, Rafael contou que começou a ouvir barulhos, “como se fosse fogos de artifício”. Passados quase dois anos, a lembrança é ainda muito forte. "Muito alto, muito alto. Imagina, muito mais alto do que o som da festa. E aí, quando eu ouço isso, eu olho para cima. O pensamento foi muito rápido: não é normal ter fogos de artifício nesse tipo de festa. Em Israel muito menos. Não é Ano Novo. Em Israel, no meio do deserto, não tinha sentido nenhum. Então, foi muito rápido esse pensamento". Rafael lembra dos primeiros foguetes  "passando na nossa cabeça".

"Eram vários, vários, vários. O perigo era que esses foguetes caíssem na gente. Porque Israel tem o Iron Dome, que é o Dome de Ferro (sistema de combate a artilharias aéreas de inimigos). Então, esse era o barulho da explosão. E aí o DJ parou na hora a festa. Ele falou 'código vermelho', em hebraico. Os israelenses podem saber o que significa um código vermelho. Agora um brasileiro, que morava lá havia cinco meses, não. O que você faz? Qual é a razão?".

Primeira reação
 
O brasileiro se agachou e fez "posição de defesa" para se proteger. "E aí eu fiquei um minuto assim nessa posição e saí correndo. Fui em direção a uma barraca, a gente conhecia uns brasileiros lá. E aí era o nosso ponto de encontro. E aí eu encontrei o Ranani e a Rafaela lá".

Diante do caos que estava se formando, Rafael lembrou que o amigo estava em Israel havia seis anos e tinha mais conhecimento sobre ataques, por ter servido ao Exército. "Ele falou: 'Rafa, a gente precisa encontrar um bunker para se proteger desses foguetes'. Até então, a gente não sabia que terroristas tinham entrado via terra. A gente não tinha ideia".

Corrida para o bunker
 
Começava, então, a parte mais dramática da história dos brasileiros em fuga de um ataque do Hamas, durante um festival de música. "A gente chegou a uma estrada que era bem perto da festa e começou a pedir carona, porque a gente não foi de carro. Um casal parou o carro, e a gente entrou voando, aceleraram de porta aberta ainda. E ali eles deixaram a gente num bunker no meio da estrada".

"Nossa ideia era: a gente para no bunker, espera os foguetes passarem e voltamos para casa. Fomos os primeiros a entrar nesse bunker".

Tiros, granadas e muitas mortes
 
A experiência de Rafael com bunkers era inexistente, até então. Era muito diferente do que ele imaginava. Não tinha porta, era um lugar que não era subterrâneo. Era uma casinha de cimento num ponto de ônibus. "E realmente ele protege de foguetes", comentou.

No desespero, ele e os amigos entraram no espaço. Na entrevista, ele fez um comentário revelador. "Não sabia que era tão pequeno. Cabiam umas 15 pessoas, mais ou menos isso".

Na memória do sobrevivente, 40 pessoas foram parar lá dentro em pouco tempo. "Tudo fechado, só um vão. Não dava para respirar já. Os israelenses falaram: 'Vamos dividir o ar'. O que significa dividir o ar? Metade fica em pé, metade fica sentado. E aí realmente a gente fez isso, eu fiquei mais agachado, o Ranani em pé, a Rafaela mais agachada. Eu estava bem encostado na parede do bunker". 

Pouco tempo depois, o sentimento de falsa segurança momentânea foi embora. "Senti o primeiro tiro nas minhas costas, depois o segundo, só que ele batia na parede. Eu sentia o impacto assim, só que ele não passava pela parede. Eu ouvi aquele barulho de filme (imita com um assovio). Granada. Eu comecei a entender. Estava tendo um tiroteio do lado de fora".


Momentos de terror
 
Rafael entendeu logo que havia dois policiais do lado de fora. E eles estavam lutando contra os terroristas. Eles tentavam proteger as pessoas que se escondiam no bunker. Então, o que parecia um pesadelo virou realidade. O brasileiro ouviu os terroristas matando a policial. "Como se fosse do meu lado".

Os integrantes do Hamas gritavam sem parar, em árabe, algo como se fosse uma comunicação com Alá. "Quando os terroristas fazem atentados, eles gritam isso, significa ‘Deus é grande’, em árabe. Eu coloquei a mão em cima da Rafa e do Ranani e comecei a rezar para proteger a gente".

O caos se formou 
 
Os gritos dos terroristas despertaram Rafael para o que viria em seguida. "Se tornou um caos. Quarenta pessoas e não tinha porta. Eu diria que uns 35 eram israelenses". Mas podia ficar pior, e ficou. Os terroristas jogaram gás no bunker.

Em 30 segundos, ele tentava puxar o ar e eu não conseguia. O tempo passava e a situação ficava ainda mais grave. Rafael lembrou da amiga. "Ela começou a gritar: 'Eu tô morrendo, eu tô morrendo, eu tô morrendo', sem parar em português mesmo".

"Eu vi ele morrer"
 
Ranani, segundo as palavras de Rafael, atravessou "o mar de gente". Os terroristas começaram a jogar mais coisas dentro do bunker. Eles começam a jogar o molotov, granadas, daquelas que explodem estilhaços. Então, se cai em você, você morre, obviamente".

O sobrevivente brasileiro revelou ter marcas de pedaços de granada no corpo. Disse, ainda, que, naquele momento, já esperava pelo pior. "E eu ficava lá no canto esperando minha hora. Para mim, era uma questão de tempo. Eu vi gente pegando granada e jogando de volta. Eu lembro deles gritando: 'É irmão, granada'. Em determinado momento, Rafael viu Ranani sendo atingido. "Eu vi ele morrer, agonizando de dor". 

Falou com Deus
 
A intensidade do relato de Rafael aumentava a cada trecho da história resgatada. Com aparente tranquilidade, ele afirmou: "Eu falei com Deus. Eu falei: ‘Tô pronto, me tira daqui, por favor. Me leva".

Pilha de corpos
 
Enquanto estava de olhos fechados, Rafael não percebeu a invasão do bunker. Os integrantes do Hamas já chegaram atirando em quem estava no bunker. "Só que eu desmaiei. E provavelmente, eu fiquei embaixo dos corpos. E, aí quando eu acordei, passei a me fingir de morto".

Sob os corpos, ele pensava em morrer. E disse que até se frustrou ao perceber que ainda estava vivo. "Embaixo dos corpos, todo esticado assim, olho fechado, e aí eu penso ‘eu não morri, que droga’. Porque era um inferno aquilo, só queria morrer. E eu comecei a rastejar para cima dos corpos porque eu precisava respirar. O cheiro era insuportável. As pessoas agonizando. Comecei a pensar em quanto tempo tinha ficado embaixo dos corpos. Não sabia, você perde totalmente a noção da realidade. O tempo todo foi quatro horas e meia".

Rafael faz contas sobre tudo o que passou. Detalha que os terroristas ficaram durante duas horas e meia no bunker. Sobre a quantidade de sobreviventes, apontou: "Dos 40? Nove sobreviveram". 

''Só não me tirar o ar''
 
Passados os momentos de terror, Rafael começou a lutar pela sobrevivência. Primeiro, passou a rastejar sobre os corpos. A primeira sensação ao puxar o ar foi de alívio. "Fui para perto da entrada, eu queria ser atingido logo, então eu tinha esse objetivo de morrer logo. E aí quando eu puxo o ar, na hora que eu soltei, eu fiz xixi. Uma hora de medo, uma hora de alívio, por estar respirando".

De volta à vida
 
A história daquele dia sangrento começou a mudar quando um rapaz entrou no bunker. Até então Rafael não sabia se era polícia ou se era mais um terrorista. "Ele começou a gritar um negócio, que aí depois eu fui descobrir. Na hora, não sabia se era hebraico, se era árabe, o que tava gritando. Era em hebraico, depois eu descobri. Ele gritou: "Quem tá vivo? Quem tá vivo"? E aí eu abri o olho. E eu abri o olho, eu olhei para ele. Ele estava vestido normal.
 
Rafael se levantou e se dirigiu para a porta do bunker. Ele veria uma das cenas mais chocantes de todo o massacre.

"A pior cena era uma pilha de corpos pegando fogo. E a fumaça entrava no bunker. Fora a pólvora, cheiro de xixi, de morte, uma pilha de corpos queimados. É, uma pilha de corpos queimados. E aí dei a volta na fogueira e vi seis policiais". 

Quem era o rapaz?
 
Rafael contou que o rapaz que entrou no bunker não era terrorista. O brasileiro descobriu que o rapaz era também sobrevivente, e ajudou a resgatar seis pessoas. E tinham mais dois que sobreviveram. 

Até hoje, Rafael não tem explicação: como escapou sem ferimentos graves? Ele sobreviveu ao ataque aéreo e ao massacre no bunker apenas com alguns machucados. "Achei que eu tinha quebrado a perna, mas não quebrei. E quando saí, ainda ouvia tiros. Então eu estava desesperado para sair de lá. Eu falei: 'meu Deus, o inferno ainda não acabou'. Eu só quero sair daqui".

"Vai ficar tudo bem"
 
Até aquele momento, Rafael achava que todos tinham morrido. Rafaela, a amiga, passou a gritar pelo namorado, Ranani. Ela queria voltar para o bunker à procura dele. "Eu não deixei. Até hoje eu não me arrependo. Não queria que ela tivesse aquela última imagem. Naquele momento, uma cena que me marcou muito foi que tinha uma menina desesperada, desesperada chorando. Imagina, depois daquilo, eu e a Rafa, a gente pegou a mão dela e a gente falou: ‘Vai ficar tudo bem’".

O socorro
 
Rafael e a amiga foram parar em um terreno baldio, ficando à espera de socorro. "Quando o reforço chegou, levaram a gente para outro lugar; de lá, a gente foi de ambulância até o hospital. No hospital eu entendi o que estava acontecendo. Até então, achava que estava num lugar errado, na hora errada. Não sabia que tinha sido um ataque articulado''.

As cenas do hospital também marcam a memória de Rafael. Ele entrou numa cadeira de plástico e tirou as meias. Então, desabou em choro. "Até então eu não tinha chorado. Eu estava em estado de choque. E aí, quando eu relaxei, comecei a chorar. Começo a entender aquela cena de guerra".

Sem ninguém da família
 
Naquele momento de dor, Rafael estava só. Sem ninguém da família. "O que me confortava eram duas coisas. Eu olhava os sobreviventes iguais a mim e eles abriram um sorriso e choravam comigo do tipo, 'a gente conseguiu'”.

“E eu criei muito apreço por moscas, você acredita? Que tinha muitas moscas me rodeando. Eu odiava, porque eu estava com o cheiro da morte. E aí eu olhava elas e agradecia. ‘Obrigado por estarem comigo’". 

Como está agora
 
Depois de um relato de dor, diante do massacre, Rafael é questionado se hoje faz terapia.
Ele responde que sim e falou sobre o sentimento, depois de vivenciar tudo aquilo, mesmo dois anos depois.

"Eu tenho 29. Tinha 27 na época. Eu entendi que eu sou muito realista. Apesar de eu ser muito sentimental, muito emocional, eu também sou muito realista. Eu entendo que o mundo não é fácil. O mundo tem suas coisas boas, suas coisas ruins. Eu acredito muito no bem. Acredito que eu tenho que influenciar as pessoas para o bem. Mas eu acredito que tem muita gente ruim".

Para Rafael, depois de tudo, existe um propósito de vida. Ele define a missão como uma tentativa de "entender o trauma das outras pessoas e ajudá-las a superar. A minha ideia é que as pessoas me ouçam e falem: 'Se ele tá conseguindo lidar com isso, ele fala sobre isso, por que eu não posso fazer também isso?'. 

Questionados sobre traumas, ele é rápido na resposta. "Eu vou ter meus flashbacks, mas é da hora, é na hora. Logo depois vem o pensamento de que já foi, que tá tudo bem, não tem nenhum problema. Voltei para Israel quatro vezes, no ano passado. Lá, meus traumas são maiores. Mas é o lugar que eu me sinto mais seguro no mundo. Como judeu. Eu posso falar lá que eu sou judeu".


Sobre a guerra
 
Depois do relato, Rafael falou sobre o atual estágio em que se encontra o Oriente Médio. 
A suspensão momentânea da guerra em Gaza e a possibilidade de libertação de mais reféns pelo Hamas.
 
"Ainda não soltaram os reféns, a guerra não acabou. Eu não vou falar no pós-guerra se a gente ainda está em guerra. Eu tô torcendo muito para que ele (Donald Trump, presidente dos Estados Unidos) consiga paz. Mas falar que ele vai conseguir só Deus sabe".

A volta ao Brasil
 
Rafael Zimerman voltou a morar em São Paulo. Sobre a saída de Israel, ele revelou:
"Não era uma decisão minha, de tipo, ah, eu quero sair de Israel para ir para outro lugar. Não, eu tava fugindo. Mas eu tava fugindo porque eu tinha que vir para minha família aqui. Imagina para minha mãe ver tudo isso e não poder me abraçar. Então, eu tive que voltar pela minha família".

O futuro
 
Para Rafael, passado não tem como mudar, você pode construir o seu futuro. "Como passar a sua experiência para outras pessoas? Todo mundo tem problema. Agora, como encontrar forças para vencer as coisas do mundo? Eu consigo fazer isso numa palestra em que tem 50 jovens, que seja 10 jovens, se eu mudar a vida de uma pessoa, eu já fiz muito. Que sorte, de certa forma".

Lamento
  
Depois que tudo que passou, restou um lamento para Rafael Zimerman.
 
"Ninguém veio perguntar para minha família ou para mim como é que eu estava. Uma coisa que sempre me pegou muito foi quando eu voltei no avião da FAB (Força Aérea Brasileira) e eu não vi ninguém recebendo nenhum dos aviões de Israel. Agora quando veio o avião dos palestinos, o próprio presidente foi receber. E eu acho justíssimo ele receber os palestinos, que são brasileiros também, e voltaram para casa. Mas por que o outro lado não foi recebido? Aí você vê que tem um peso e uma medida. Então, é uma chateação pessoal minha, porque eu sempre defendi as minorias. E aí quando foi a minha vez, as minorias viraram a cara”.

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