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Em vídeo, Jobim conta como evitou revisão da Lei da Anistia

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Foto: Valter Campanato | Agência Brasil
"Eu vou tentar fazer uma espécie de testemunho de coisas que eu ouvi e de coisas em que eu fui ator. Ou seja, fui personagem desse processo todo que envolve essa legislação, essas discussões políticas do governo sobre o problema da anistia."
 
Ex-ocupante de alguns dos principais cargos da República nos últimos 30 anos, Nelson Jobim, 73, estava à vontade em novembro de 2014, em um encontro com advogados em Ilhabela (SP), quando detalhou como ajudou a impedir a revisão da Lei da Anistia em pelo menos três oportunidades nos governos FHC (1995-2002) e Lula (2003-2010).
 
Promulgada em 1979 pelo último presidente da ditadura militar (1964-1985), o general João Figueiredo, após uma ampla mobilização da sociedade civil e de líderes da oposição, a lei completa 40 anos nesta quarta-feira (28).
 
O texto concedeu anistia "a todos quantos [...] cometeram crimes políticos ou conexos com estes" de 1961 a 1979. Permitiu o regresso de diversos políticos da oposição que estavam exilados no exterior.
 
Desde o primeiro momento, contudo, a impunidade de militares que participaram da repressão à esquerda passou a ser questionada por familiares de mortos e desaparecidos.
 
O tema estava no ar quando Jobim proferiu a palestra restrita a cerca de 50 pessoas em um seminário promovido pelo advogado Tercio Sampaio Ferraz Jr. O depoimento foi filmado –no ar há mais de quatro anos, o vídeo de 35 minutos tinha apenas 190 acessos no YouTube até o último dia 21.
 
Jobim foi ministro da Justiça do governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB) de 1995 a 1997, ministro do STF indicado por FHC de 1997 a 2006 e ministro da Defesa nos governos Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Dilma Rousseff (PT) de 2007 a 2011.
 
Em meados dos anos 1990 surgiu o primeiro esforço do governo federal para apurar os crimes da ditadura com a criação, em dezembro de 1995, da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, vinculada à Presidência da República. A comissão reconhecia as vítimas em razão de suas atividades políticas e autorizava indenizações pecuniárias.
 
Em Ilhabela, Jobim contou que, antes de fechar o texto do decreto que criou a Comissão sobre Mortos e Desaparecidos, acertou com os militares a amplitude da medida.
 
Ficou combinado que seriam indenizados apenas os familiares dos mortos ou desaparecidos quando "em estado de detenção", ou seja, nas mãos do Estado, e não os mortos em supostos confrontos armados.
 
Na vigência da lei, segundo Jobim, "o momento mais grave" foi quando o então diretor-geral da Polícia Federal, Vicente Chelotti, lhe procurou para dizer que haviam sido encontrados num prédio da PF em Salvador documentos que comprovavam que o guerrilheiro e ex-militar Carlos Lamarca (1937-1971) fora assassinado quando já estava rendido, no sertão da Bahia.
 
Assim, dentro dos critérios estabelecidos entre Jobim e os militares, Lamarca e família mereciam indenização. Mas, revelou Jobim, ele "não faria isto sem falar com os militares".
Jobim também procurou pessoas da esquerda para antecipar que o governo não aceitaria revanchismo.
 
Reuniu-se com os advogados Luiz Carlos Sigmaringa Seixas (1944-2018) e Luiz Eduardo Greenhalgh. O ministro teria dito que "nós vamos decidir no sentido de assumir a responsabilidade, mas eu não quero retaliação. Porque nós estamos, com isso, construindo uma conciliação futura".
 
No primeiro volume de "Diários da Presidência" (Companhia das Letras, 2015), que cobre os anos de 1995 e 1996, Fernando Henrique Cardoso indica que a posição do ministro era aprovada pelo presidente.
 
"Não quero que se reabra um inquérito contra o Exército por causa do Lamarca ou o que seja. [...] Essas questões não devem servir de alavancagem para novos problemas, novos conflitos que não têm mais sentido", escreveu.
 
FHC achava correta uma apuração, mas nunca com o propósito de punição dos militares. Também não aceitava "fazer o Exército pedir desculpa", isso "não passou pela cabeça de ninguém [do governo]".
 
Funcionou a estratégia do governo FHC de fazer o reconhecimento de crime sem punição. Segundo Jobim, o próximo episódio relevante sobre o tema do qual participou ocorreu só no final dos anos 2000, quando a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) ajuizou uma ação no STF para que fosse reconhecida que a anistia concedida pela lei aos crimes políticos ou conexos "não se estende aos crimes comuns praticados pelos agentes da repressão contra opositores políticos durante o regime militar".
 
A ação foi ajuizada em outubro de 2008. Cinco meses antes, o Ministério Público Federal em São Paulo havia ajuizado a primeira ação civil pública contra a União e dois ex-comandantes do DOI-Codi, unidade de repressão do 2º Exército, Carlos Alberto Brilhante Ustra e Audir Santos Maciel, por crimes diversos. Assim, o julgamento no STF seria um momento-chave sobre o futuro da Lei da Anistia. Na época da ação, Jobim era ministro da Defesa do presidente Lula.
 
Em Ilhabela, revelou que atuou pessoalmente junto aos ministros do STF, tribunal que ele havia presidido de 2001 a 2003, e apresentou um estudo, segundo ele, baseado em informações fornecidas pelo advogado Sepúlveda Pertence.
 
O ex-ministro disse que, segundo Pertence, "a Lei de Anistia é essencialmente irreversível porque implica tornar não criminosos atos criminosos".
 
Em 2010, o STF, após um parecer favorável à posição dos militares encaminhado pelo então advogado-geral da União, Dias Toffoli, negou seguimento à ação da OAB.
 
A próxima disputa que envolveu Jobim deu-se no final do segundo mandato de Lula, quando o governo passou a considerar a criação de uma Comissão Nacional da Verdade, em 2009. Jobim voltou a atuar contra uma comissão que visasse a punição dos militares.
 
"Uma coisa é obter informação verdadeira e a outra é tentar tirar consequências de uma informação verdadeira", disse o ex-ministro em Ilhabela. Jobim disse que a crise "se agravou" dentro do governo no final de 2009 e sua palavra estava sendo colocada em xeque junto aos comandantes militares.
 
Jobim então promoveu uma reunião "no aeroporto Santos Dumont com todos os três Altos Comandos das três Forças". Jobim levou a palavra do presidente Lula. No auge do embate, segundo Jobim, o ex-deputado José Genoino (PT-SP) "trabalhou brutalmente no sentido de apaziguar os entendimentos".
 
Procurado, Jobim se recusou a receber a reportagem para falar sobre seu depoimento de 2014. Também disse, via assessoria, que não gostaria de receber nenhuma pergunta por escrito.