O valor do silêncio
Vivemos cercados de barulho. Motores roncando, música ensurdecedora preenchendo diversos ambientes sociais, notificações gritando no bolso.
Vivemos cercados de barulho. Motores roncando, música ensurdecedora preenchendo diversos ambientes sociais, notificações gritando no bolso. Em meio a tanta vibração sonora, o silêncio tornou-se um bem escasso – e urgente. Ele não é apenas ausência de ruído, mas pode ser considerado presença de atenção, de respeito e de lucidez.
Mais do que ausência de som, o silêncio é cuidado com a mente, o espírito e a convivência. Em tempos de ruído constante, aprender a silenciar – inclusive no trânsito – é um gesto de saúde e civilidade.
O trânsito é talvez o retrato mais ruidoso da vida urbana. E ali, uma das armas sonoras mais comuns e negligenciadas é a buzina. Criada como dispositivo de alerta e segurança, ela foi sequestrada pela impaciência. Hoje, em vez de evitar acidentes, a buzina é usada como válvula de escape emocional: pressiona, insulta, impõe.
Essa transformação silenciosa da buzina em símbolo de intolerância urbana é um alerta. Seu uso indiscriminado contribui para um ambiente mais agressivo, estimula reações impulsivas e alimenta conflitos. É comum que discussões, brigas e até tragédias comecem com um simples toque impaciente. O som, quando não respeita o outro, pode ser o estopim da violência.
Em contrapartida, o silêncio no trânsito é sinal de maturidade social. Respeitar a espera no sinal vermelho, não buzinar em congestionamentos, conter o impulso de reagir com ruído são atitudes que demonstram empatia. Não é exagero dizer que o silêncio, nesse contexto, salva a saúde, a harmonia e a própria segurança.
O excesso de estímulos sonoros afeta também a saúde física e mental. Estudos mostram que a exposição contínua ao barulho eleva os níveis de estresse, prejudica o sono, a concentração e até a saúde cardiovascular. Em contraste, ambientes mais silenciosos ajudam a restaurar o equilíbrio interno e favorecem o bem-estar coletivo.
Tradições espirituais diversas, como o cristianismo, o budismo e o hinduísmo, sempre valorizaram o silêncio como prática de reconexão. O filósofo Alan Watts dizia que o silêncio não é ausência, mas profundidade. O monge Thich Nhat Hanh ensinava que só em silêncio podemos realmente escutar o outro e a nós mesmos.
Para Santo Agostinho, o silêncio era condição para ouvir a voz de Deus que fala no íntimo do coração humano. Em sua busca pela verdade interior, ele associava o recolhimento e o silêncio à sabedoria e à presença divina. Agostinho defendia que, afastados do barulho do mundo, podemos perceber melhor a luz da razão e a ação da graça. O silêncio, para ele, não era vazio, mas ambiente silencioso onde se pode perceber a presença de Deus.
A ecologia sonora, conceito criado por Murray Schafer, defende que precisamos reaprender a escutar o mundo ao redor com mais atenção e sensibilidade. Isso vale para os sons da natureza – mas também para o som urbano que produzimos sem pensar.
No Brasil, embora o Ministério Público atue na fiscalização de abusos, a falta de efetivo da Polícia Militar em muitos estados – como é o caso de Pernambuco – limita ações mais firmes contra emissões sonoras fora dos padrões legais. Essa omissão alimenta a sensação de impunidade e estimula o desrespeito coletivo ao direito de (não) ouvir (e viver) em paz.
Incluir o silêncio na rotina urbana não exige grandes esforços. Basta desligar o motor quando possível, evitar buzinas desnecessárias, respeitar o som do outro e praticar a escuta sem pressa. No trânsito e na vida, silenciar também é uma forma de avançar.
Em tempos de excesso, fazer menos barulho é um ato de cidadania.
Jornalista e mestrando em Ciências da Religião pela Unicap