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Linchamento digital ou virtual

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Inicialmente, cabe conceituar o termo. Segundo o Dicionário Aurélio, linchamento é “Justiçar sumariamente ou sem julgamento. Punir usando grande violência”. Por sua vez, o Dicionário Online de Português conceitua como sendo “Assassinato de um criminoso cometido por uma multidão. Ação ou efeito de linchar, de agir violentamente contra alguém”. Contudo, em pleno século XXI não é cabível punir ou justiçar alguém, menos ainda fazer uso de grande violência para isso. Registro que há várias formas de violência, além de física.

Linchamento digital ou virtual, do ponto de vista de quem pratica, deve ser uma forma de combater determinada conduta social tida como inaceitável - através de ataques e de grande comoção social - com o objetivo de humilhar, constranger, expurgar a pessoa que teve a conduta, julgando-a no tribunal da internet. A postura é de condenação, o objetivo é rechaçar determinada pessoa usando as redes sociais e essa onda de ataques acaba por manipular/influenciar outras pessoas a fazerem o mesmo.

Dessa maneira, a liberdade adquirida online se torna preocupante, pois o direito constitucional à liberdade de expressão não pode sobrepor outros igualmente fundamentais, constitucionais e invioláveis, tais como a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, ou mesmo a presunção de inocência que busca exatamente evitar atitudes injustas e julgamentos precoces. É relevante mencionar que a Carta Magna concedeu a todos os brasileiros o direito ao devido processo legal, e este busca evitar decisões precipitadas e equivocadas, garantindo aos cidadãos o direito à defesa em toda a sua amplitude.

Ademais, aquele que esconde sua identidade em um perfil fake, utilizando anonimato para atacar e linchar, pratica uma conduta inconstitucional. S a liberdade de expressão é garantida pela constituição, o anonimato é vedado.
 
Cabe salientar que aquele que usa o nome e a imagem de alguém para criar um perfil visando promover ataques, está praticando o crime de falsa identidade e é possível se chegar à real identidade do usuário falso através da devida investigação ou mesmo através de um processo.

É relevante informar que há outros desdobramentos - como a possibilidade de indenização ao ofendido - e sanções que podem ser aplicadas, dependendo da gravidade da conduta. Lembrando que na Internet o alcance de tudo é consideravelmente maior, o cuidado e a responsabilidade devem ser redobrados.
 
A prática de linchar não é recente, embora o linchamento no ambiente digital tenha um contexto contemporâneo. O linchamento remete a um momento histórico pretérito como, por exemplo, o período da inquisição, de corpos queimados e enforcados em praça pública, tudo realizado em forma de espetáculo. Nesse contexto, na antiguidade, "fazer justiça com as próprias mãos" era comum, considerado uma maneira de “acertar as contas” e se destacar na comunidade.
 
Atualmente, o linchamento ocorre por inúmeros motivos: uma declaração de uma figura pública considerada “inaceitável” pela maioria, uma fala desatenta sobre um tema polêmico, um texto, um vídeo, uma postagem, tudo pode servir de estopim para um linchamento digital.

Ressalto os linchamentos que surgem a partir de Fake News e ganham força através do compartilhamento dessas notícias falsas em redes sociais, em grupos de WhatsApp, e até de “boca em boca”. Uma única Fake News pode acabar com a vida e a reputação de alguém, pode quebrar uma empresa, acabar com casamentos, pode destruir - em instantes - a credibilidade construída em uma vida. Esse contexto pode levar a pessoa envolvida a transtornos emocionais e psicológicos, tais como depressão, ansiedade, síndrome do pânico, distúrbios alimentares, autolesão, e em casos mais extremos pode até levar ao suicídio.

Depois que a “história” viraliza, dificilmente alguma coisa que se fale ou que se faça será capaz de reverter a propagação e o alcance do que foi amplamente divulgado. O protagonista do linchamento não tem espaço para se defender de maneira proporcional, acaba se sentindo deprimido, acuado, rejeitado, sofrendo forte pressão social, sem meios para fazer para cessar as agressões, considerando as proporções que tomam.

As empresas também podem ser alvos de linchamentos, podem enfrentar boicotes, ataques à imagem e à credibilidade, chegando até a promoção de campanhas para não usar o produto ou serviço da marca ou empresa X, causando prejuízos e muitas vezes danos irreparáveis.

Nesse contexto, é indispensável lembrar do caso de “Fabiane Maria de Jesus” - em 2014. Ela foi vítima de linchamento que começou na Internet, ganhou as ruas e a levou à morte. Ela foi confundida com um retrato falado divulgado em determinada página de uma rede social, que falava sobre uma mulher que sequestrava crianças para rituais de magia negra e que ela tinha sido vista no Guarujá, mas tudo não passava de uma Fake News. Os comentários promoviam a ira e o ódio dos usuários, mensagens diziam que se pegassem a sequestradora iriam matá-la, entre outros ataques.

No dia do ocorrido, que deveria ser apenas mais um dia comum para Fabiane, alguém a confundiu com o retrato falado divulgado da suposta sequestradora. Fabiane era casada e tinha dois filhos pequenos. O linchamento que começou na internet, se materializou, ela foi arrastada pela multidão, espancada, jogada de uma marquise e tudo foi filmado, pois com as imagens se visava promover uma “lição” para os sequestradores de crianças. Das frases destacadas da gravação se percebia a ira da população: “é isso que a gente faz com sequestradoras de crianças” e outras coisas que não se pode narrar. As gravações foram amplamente divulgadas através do WhatsApp. A ira foi tão grande que até a polícia teve grande dificuldade de se aproximar para socorrê-la. Infelizmente ela faleceu e deixou marido e dois filhos pequenos, que vão ter que conviver com essa triste história e com a ausência da mãe. Os envolvidos que foram identificados no vídeo responderam criminalmente na medida de suas condutas. Inspirado nesse caso, foi criado o Projeto de Lei n° 7544/2014, conhecido pelo nome da vítima, mas este projeto está parado desde 2019, quando foi apensado a outro Projeto de Lei.

O “barraco virtual” não é um entretenimento coletivo, é algo sério e pode evoluir para um linchamento virtual. O que nasceu na internet pode se materializar, botando em risco a integridade e a vida dos envolvidos, por isso não se deixe levar, mesmo que haja motivação para grande comoção social, ou para criticar determinada situação ou conduta. Não nos cabe julgar, nem mesmo partir para punição, deixemos que os diretamente envolvidos resolvam a situação através dos meios legais. Afinal, não vivemos mais na era das barbáries e dos julgamentos em praça pública.