Em 'Valor Sentimental', mágoas e conciliações se misturam através do cinema
Um dos principais concorrentes de 'O Agente Secreto' ao Oscar, 'Valor Sentimental' já está em cartaz nos cinemas
As irmãs Nora (Renate Reinsve) e Agnes (Inga Ibsdotter Lilleaas) estão distantes do pai, Gustav (Stellan Skarsgård), desde que ele as deixou para seguir uma prestigiada carreira como diretor de cinema. Após a morte da mãe, elas decidem vender a casa, mas descobrem que a mesma também está em nome de Gustav, que, em fase decadente da carreira, pretende filmar um projeto autobiográfico utilizando o imóvel como cenário. A ideia original é que Nora seja a protagonista, mas a atriz Rachel (Elle Fanning) acaba entrando no peculiar projeto.
Vencedor do Grande Prêmio (o “segundo lugar”) do Festival de Cannes e um dos principais concorrentes da categoria internacional dos p temporada, Valor Sentimental, já em cartaz, une o que há de mais humano e sensível na filmografia de Joachim Trier à celebração da força unificadora da própria construção de um filme. Responsável por longas aclamados como Oslo, 31 de Agosto, Thelma e A Pior Pessoa do Mundo, o cineasta norueguês chega aqui ao que parece ser seu trabalho mais pessoal, explorando uma subjetividade dramática que às vezes parece simular o devaneio, mas que parece sempre duramente real.
O naturalismo no cinema de Trier parece sempre algo fugidio e, em Valor Sentimental, essa relação entre o que é real e o que é ficcional é justamente o que dá não apenas vida, mas também humor e ternura à história. Do ponto de vista estético, ele lembra bastante os últimos longas do diretor, sobretudo na maneira como mantém um rigor notável na radiografia dos cenários, ao mesmo tempo em que parece sempre deixar os atores muito soltos para se surpreenderem com as próprias emoções.
É dessa sensação de imprevisibilidade nos gestos e reações, sobretudo, que o filme tira seu sarcasmo inteligente, quase sempre indivisível das emoções doloridas, traumas, ressentimentos e frustrações difíceis — quando não impossíveis — de serem sanadas. É atribuída à casa, em que quase toda a trama se passa, uma aura de sacralidade e, por outro lado, ela guarda, em cada desvão, as angústias das filhas com relação à infância.
Interpretada por Renate Reinsve com comovente fúria internalizada, Nora é uma fascinante e complexa protagonista, que embarca no universo do teatro como forma de escapar, de algum modo, do cinema, representado pelo seu pai. A ambiguidade de seus sentimentos com relação a ele e à sua presença marca algumas das melhores cenas do filme. E a tentativa de aproximação torta, mas verdadeira, por parte de Gustav — que Stellan Skarsgård incorpora com um magnetismo até mais impressionante do que o usual — já responde pela universalidade e alcance da pulsão dramática que Valor Sentimental possui.
Herdeiro de Ingmar Bergman e de Woody Allen, Trier não aposta todas as suas fichas nos personagens, mas sim na capacidade da plateia de compreendê-los e, desse modo, assimilar seus afetos mais dúbios. Embora esteja longe de uma produção descompromissada para o Natal, faz sentido que Valor Sentimental esteja sendo lançado no Brasil neste período do ano, quando recordações familiares, agradecimentos, mágoas e alegrias se embaralham à flor da pele.
Para Joachim Trier, a finalização de um filme é tão capaz de machucar cicatrizes quanto de remediá-las, mesmo que provisoriamente. Poucas cartas de amor ao cinema são mais humanas do que esta.