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‘Lady Tempestade’ abre o 24º Festival Recife do Teatro Nacional nesta quinta-feira (20)

Os escritos da pernambucana Mércia Albuquerque ganham vida em ‘Lady Tempestade’, espetáculo protagonizado por Andrea Beltrão que abre o Festival Recife do Teatro Nacional

Por Diario de Pernambuco

A atriz global será a responsável por abrir o 24º Festival Recife do Teatro Nacional, no Teatro de Santa Isabel, com apresentações de quinta (20) a sábado (22)

Pedro Cunha, Especial para o Diario

Em 2 de abril de 1964, o Recife assistiu a uma das cenas mais brutais do início da ditadura militar: Gregório Bezerra, líder camponês, arrastado seminu pelo asfalto, preso ao para-choque de um jipe comandado pelo coronel Darcy Villocq.

Entre as testemunhas, estava a jovem advogada pernambucana Mércia Albuquerque (1934-2003), então com 30 anos, que transformaria aquele horror no ponto de partida de uma militância decisiva, mas raramente reconhecida na dimensão que merece. Ao chegar em casa, decidiu defender Gregório e mais de 500 outras pessoas perseguidas pelo regime, tornando-se uma das figuras centrais da resistência jurídica brasileira.

Seus diários, transfigurados em Lady Tempestade, monólogo protagonizado por Andrea Beltrão e dirigido por Yara de Novaes, abre o 24º Festival Recife do Teatro Nacional, no Teatro de Santa Isabel, com apresentações de quinta a sábado. Um reencontro da cidade com a mulher que se recusou a silenciar diante da violência que testemunhou.

A partir daquele episódio, Mércia construiu um acervo minucioso de registros: páginas datadas, detalhadas, que misturam indignação, rigor e compromisso radical com a verdade. Esses escritos, produzidos entre medo e lucidez, formam o alicerce da trama. O título nasce de uma frase célebre da advogada: “minha mãe é bonança; eu não, eu sou tempestade”. Entre essas anotações, estão também relatos do cotidiano sombrio de receber em seu apartamento, no Edifício Ouro, no centro do Recife, mães desesperadas em busca de notícias de filhos desaparecidos, cenas que a peça recupera com intensidade.

Com texto de Sílvia Gomez, o espetáculo estabelece uma ponte entre tempos. Andrea Beltrão interpreta A., personagem que recebe misteriosamente os diários e se vê atravessada por relatos que não perderam urgência. “Ela viveu tudo, datou tudo. Atuou dentro de um sistema militar, contra um poder militar, a favor de presos torturados. Talvez até tivesse o desejo de ser poetisa, e se dedicou a lutar porque não encontrou outra saída”, conta a atriz em entrevista exclusiva ao Viver.

A montagem adota a estrutura de “diário dentro do diário”, criando um fluxo em que passado e presente se sobrepõem. O refrão “Essas coisas acontecem, aconteceram, acontecerão”, retirado dos escritos, sintetiza a persistência da violência de Estado e o risco do apagamento histórico. Para Andrea, dar corpo a essa personagem exigiu atravessar camadas técnicas, emocionais e políticas. A atriz conta que encontros com familiares de pessoas defendidas por Mércia ampliaram o impacto do material: “A partir daí, a força do relato tomou outra dimensão”.

Com vasta trajetória no teatro, cinema e televisão, a atriz confere ao espetáculo a maturidade de quem domina a palavra e o gesto. “Mércia dizia que era uma contadora de histórias de pessoas que reconstruíram a liberdade. Eu também sou uma contadora. Contar histórias é uma forma amorosa de pensarmos juntos no nosso passado, presente e futuro”, diz. E completa: “O esquecimento importa aos que contaram a história do jeito que quiseram. O teatro tem esse poder reflexivo, de abalar certezas, de apertar o estômago”.

A direção de Yara de Novaes traduz essa travessia com um desenho cênico que transforma o espaço em metáfora. A peça começa em um ambiente deteriorado, de luz exígua, que se abre à medida que os relatos emergem, convertendo clausura em respiro. A trilha é assinada por Chico Beltrão, filho de Andrea, cuja participação reforça o diálogo geracional da montagem.

A presença de Andrea no Recife também dialoga com sua trajetória marcada por encontros com a dramaturgia pernambucana, especialmente a de Newton Moreno, um dos nomes mais inventivos do teatro contemporâneo. É dele o texto de As Centenárias, tragicomédia estrelada por ela e Marieta Severo, sobre duas carpideiras, mulheres contratadas para chorar em enterros. A parceria com ele se repetiu em Nômades, com Malu Galli e Mariana Lima, e em Jacinta, espetáculo em que Andrea interpretou uma atriz portuguesa, considerada a pior do mundo, que acaba deportada para o Brasil.

Esse percurso, atravessado por narrativas que exploram memória, identidade e fabulação, torna ainda mais potente sua chegada à cidade com Lady Tempestade, em que novamente se vê convocada a dar corpo a uma história que nasce no Nordeste, reverbera pelo país e insiste em não ser esquecida.