No elegante 'Mirrors No. 3', o diretor Christian Petzold faz comédia sobre remendos
Filme 'Mirrors No. 3', exibido na programação da 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, transita entre a melancolia fantasmagórica e o senso de humor
Laura (Paula Beer) acaba de sofrer um acidente traumático e é acolhida por uma Betty (Barbara Auer) que, apesar de uma troca de olhar misterioso pouco antes do ocorrido, parece ter com ela as melhores intenções de acolhimento. Esse é o ponto de partida do novo drama do diretor alemão Christian Petzold, Mirrors No. 3, exibido na 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
A coisa mais surpreendente que o cineasta (de filmes excelentes como Phoenix, Em Trânsito e Afire) faz é transicionar da sua fantasmagoria usual para uma quase comédia sem qualquer esforço perceptível. O clima de presságio de toda a sequência inicial é fascinante — uma tensão de aparente simplicidade e elegância tão notáveis em sua filmografia. Os olhares na estrada que antecedem o acidente têm um efeito poderoso, capaz de alterar todo o curso do filme.
Mas, com exceção da estranheza provocada por esse ponto de partida do acidente, Mirrors No. 3 é um trabalho de menos estranhezas e mais reações objetivas e naturalistas do que outros mais enigmáticos de Petzold. Não há nem a sensação fugidia de Em Trânsito, tampouco a fantasmagoria difícil de definir de Undine, ou a atmosfera sombria de Afire. Tudo parece bastante claro desde o começo — e, francamente, um tanto previsível também.
Ressalfas mínimas à parte, o filme é de uma economia inacreditável. Ele reduz ao essencial essa construção da relação entre Laura e Betty e faz o mesmo com a chegada do pai e do filho da dona da casa. Em menos de 20 minutos, as interpretações e a radiografia do cenário comunicam informações suficientes para que o espectador sinta o passar do tempo e consiga se ambientar com naturalidade.
Tematicamente, Mirrors No. 3 é uma história de remendos que não dão certo. Tudo está quebrado ou estagnado na casa de Betty, aguardando uma motivação para um conserto. Mas, assim como a própria presença de Laura não dá conta de preencher as lacunas daqueles personagens, essas tentativas de reorganizar o espaço por parte do pai e do filho são sempre vãs.
As figuras masculinas estão travadas, voltadas a rotinas vazias e materiais, enquanto as femininas estão sempre em uma busca — moral ou não — de reencontrar uma significação para suas vidas e dores. Com certeza, existem vários filmes interessantes e geniais que poderiam existir aqui, no meio dessa trama também, mas parte da beleza do filme — e de toda a obra de Petzold — está naquilo que o público consegue intuir a partir do que ele exprime.
A forma como a virada do segundo ato de Mirrors para o terceiro intensifica o drama, apenas para, mais uma vez, migrar para a comédia, é dessas preciosidades cheias de discrição que poucos cineastas são capazes de proporcionar em 1h20 de duração.