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Artista Lia Letícia tensiona a história da arte em exposição no Recife

Sob curadoria de Clarissa Diniz, exposição reúne cerca de 30 obras, articulando linguagens várias, provocações, ironia e ativismo para questionar disparidades sociais, ecocídio colonialista e a própria arte como instituição

Por Allan Lopes

Lia Letícia sintetiza sua trajetória iconoclasta no Mamam

Radicada entre Recife e Olinda desde 1998, Lia Letícia é dona de uma ampla trajetória na qual inscreve a arte e suas práticas para além de seus muros e instituições mais oficiais. Ao longo desses anos, tem convocado camelôs, artistas de rua, usos não-especializados da ideia de arte e práticas políticas ativistas em seus trabalhos. Em articulação com a curadora Clarissa Diniz, a artista Lia Letícia apresenta, a partir deste sábado (27), no Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (Mamam), na Rua da Aurora, uma panorâmica com cerca de 30 trabalhos exemplares desta poética.

“Lia Letícia tem sua obra lastreada não na excepcionalidade e pretensa autonomia da arte, mas em seu oposto: sua ordinariedade, suas disputas, suas violências. Para Lia, a arte é parte dos conflitos e construções da cultura e, como tal, deve ser pensada, criticada e tensionada por práticas culturais que se situam à margem do coração de sua hegemonia econômica, política e simbólica”, diz Clarissa Diniz.

Ao longo dessas décadas, Lia Letícia fez performance, pintura, objeto, instalação, vídeo, fotografia, intervenção, serigrafia, direção de arte, gestão de espaços independentes, ilustração, cinema, militância, cenografia, curadoria, educação. Sua prática nunca se restringiu a galerias e museus: ao contrário, esteve fundamentalmente lastreada nas ruas, sets de filmagem, comunidades, salas de aula ou mesmo em grupos de WhatsApp. “Não à toa, passaram-se muitos anos até que sua obra pudesse ser apresentada em conjunto numa instituição cultural de relevo: um gesto que, sem qualquer ambição de contemplar toda a sua trajetória, tem entretanto a intenção de compartilhar forças norteadoras de sua poética com os públicos do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães”, segue a curadora.

A exposição das obras e a série de ações que compõem o projeto Tudo Dá, homônimo de uma das obras apresentadas, traz consigo singularidades do percurso da artista, tentando redimensionar e representar corpos que, de diversas formas, foram invisibilizados ou excluídos da história oficial da arte. Sua obra, portanto, problematiza a linguagem e o campo social da arte. “Através de uma atitude de desconstrução, esta situação evidencia os elementos que compõem o constructo social ‘arte’, expondo-os provocativa, irônica e humoradamente - revelando que, entre a genérica ‘arte’ como convenção social e os artistas em particular, bem como entre a crítica de arte como instituição, há um território de emergente diferenciação: o da subjetividade e da criação”, observa a curadora.

A mudança de Lia para Olinda há quase três décadas, como sublinha Clarissa Diniz em sua pesquisa, possibilitou a consolidação das práticas artísticas que haviam iniciado tempos antes, quando trabalhou na confecção de carros alegóricos no carnaval gaúcho. Em Olinda, Lia atuou no ateliê de Iza do Amparo e nas ações do coletivo Molusco Lama.

“Aqui, Lia encontrou espaços, interlocutores e aliados tão instigantes quanto aguerridos para sua formação e atuação como artista. Desde então, tem desenvolvido uma obra vasta em contaminações e colaborações, hackeando e reinventando concepções elitistas de arte que, como velhas fortalezas, ainda hoje erigem muros que inocuamente tentam conter sua vocação ao múltiplo, ao outro ou ao avesso de si”.

Ocupando todos três andares do Mamam, a exposição se organiza em quatro núcleos. Neles, estão trabalhos de linguagens e períodos distintos que, todavia, transitam nas mesmas órbitas políticas. No térreo, Nesta terra, tudo dá reúne obras que denunciam o extrativismo (neo) colonial através de uma filosofia da abundância capaz de resistir aos seus projetos de escassez.

No primeiro andar, o núcleo Artista desconhecida explora a debochada iconoclastia que tanto identifica a obra de Lia Letícia; enquanto Arriar a bandeira desafia o triunfalismo do poder e suas presunções de progresso. Por fim, Desculpe atrapalhar o silêncio de sua viagem congrega obras que, a partir da experiência das cidades, insurgem-se contra as injustiças sociais do nosso tempo.

“A abundância é o principal conceito poético e político que preenche os espaços entre os trabalhos, de diferentes temporalidades, que apresento em Tudo Dá. Destarte a presença da colonialidade tensionar frequentemente a minha trajetória desde os anos 2000, é a partir da prática e tática milenar comunitária do compartilhamento e multiplicação que penso não só os trabalhos da exposição, mas também minha poética artística e de vida” sintetiza Lia Letícia.

Ao longo da exposição, alguns gestos e interesses revelam sua permanência na obra da artista: memórias insurgentes, posicionamentos irônicos, subversões de traços anárquicos, enfrentamentos políticos performativos, criações colaborativas, o caminhar como método, estéticas da abundância. Permeando diferentes temas e estratégias de linguagem, de forma transversal, testemunhamos a iconoclasta vocação da obra de Lia Letícia de arejar as tão estafadas concepções tradicionais de arte, aqui devidamente inscritas — e nutridas – na vida que tudo dá.

“A ideia de apropriação e subversão da frase ‘Nesta terra em se plantando, tudo dá’, também pode ser pensada como uma certa infidelidade que tenho quanto às categorizações da arte: minhas obras nascem de inquietações quanto a questões de vida, quais suportes e linguagens em que as proponho são fruto do que o trabalho pede. Nesse sentido, se é pintura, fotografia, performance… é essa provocação que vai definir. Tudo dá”, diz a artista.