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Porto Musical não deve acontecer em 2026 por falta de recursos, diz Melina Hickson

A produtora pernambucana Melina Hickson é vice-presidente da Associação Brasileira de Festivais Independentes (Abrafin). Em entrevista ao Diario, ela defende mais políticas públicas de fomento para eventos da sociedade civil, como o Porto Musical.

Por Camila Estephania

O Porto Musical foi criado há 20 anos e já trouxe atrações como Arto Lindsay, Mayra Andrade, Chico César e Anelis Assumpção.

 Produtora do Porto Musical, a pernambucana Melina Hickson acaba de assumir a vice-presidência da Associação Brasileira de Festivais Independentes (Abrafin) em um momento particularmente desafiador da sua carreira. Segundo afirma, há risco de a próxima edição do Porto Musical, que seria comemorativa de 20 anos do evento, não sair do papel em 2026.

“Provavelmente não acontecerá por falta de recursos. É um clássico dos eventos independentes, que têm necessidade de fomento. Nesse momento, meu evento serve para exemplificar a importância de uma associação como a Abrafin para lutar pela consolidação e sustentabilidade dos festivais”, diz a produtora, que atua há 30 anos na área, em entrevista ao Diario de Pernambuco.

Desde 2005, o festival acontece a cada dois anos no Recife, na semana que antecede o carnaval. O evento já foi responsável por trazer à capital pernambucana shows de várias partes do mundo e do Brasil, como Arto Lindsay (EUA), Mayra Andrade (CV), Chico César (PB), Anelis Assumpção (SP), Felipe Cordeiro (PA), Tássia Reis (SP) e Siba (PE).

Além das atrações musicais, o festival promove atividades como feiras de negócios, mesas de debate e ações formativas. Nas últimas três edições, o Porto Musical foi viabilizado pelo Funcultura e recebeu apoio da Prefeitura do Recife.

Segundo Melina, os investimentos da iniciativa privada têm se concentrado em grandes festivais, o que deixa uma lacuna no mercado independente. Diante desse cenário, a produtora defende que festivais da sociedade civil de ação continuada, como o Porto Musical, deveriam fazer parte da agenda de políticas públicas de governos e prefeituras.

Para ela, os eventos cumprem o papel de capacitar profissionais da área de cultura, criar oportunidades no setor e fomentar as cenas locais, assumindo responsabilidades que deveriam ser de gestões públicas. Também seriam fundamentais para a democratização do acesso à diversidade musical brasileira, pois promovem a circulação tanto de nomes consagrados quanto de novos artistas.

Leia a entrevista na íntegra:

A nova diretoria da Abrafin é presidida pelo cearense Ivan Ferraro e conta com profissionais de várias regiões do Brasil. Qual é a importância de termos uma representante de Pernambuco na vice-presidência da associação?

Eu acho que é uma diretoria muito diversa do ponto de vista territorial e de gênero. Isso é muito legal, porque as realidades de cada estado são muito diferentes. Eu e Ivan somos diretores de feiras que também são festivais. Isso é bom para a Abrafin, para que a gente possa entender que esses eventos são um momento de capacitação do mercado e não puro entretenimento de assistir show, é algo muito positivo. Acho que para Pernambuco, vale pela visibilidade.

Sou uma profissional daqui, que mora aqui, que sempre fez o seu evento aqui, apesar de já ter recebido muitas propostas para tirar o Porto daqui, mas mantive. Isso traz visibilidade para a música do estado, mesmo que eu não tenha o Porto Musical viabilizado financeiramente para a próxima edição. Com o que tenho neste momento, provavelmente ele não acontecerá por falta de recursos. É um clássico dos eventos independentes, que têm necessidade de fomento. Neste momento, meu evento serve para exemplificar a importância de uma associação como a Abrafin para lutar pela consolidação e sustentabilidade dos festivais

Em outras edições do Porto Musical, vocês já tinham o festival encaminhado com seis meses de antecedência?

Totalmente. Nesta época, eu já estaria trabalhando no festival, montando curadoria, já teria anunciado a abertura das inscrições para as bandas que queriam fazer o pitching, os showcases…

E o que faltou neste ano?

A gente não conseguiu captar recursos até agora. Não tivemos uma resposta positiva da iniciativa privada. No poder público, a gente já tinha ganhado o Funcultura nas três últimas edições, então não teríamos como ganhar agora. Também sempre contamos com apoio da Prefeitura do Recife, mas não é o suficiente.

A atuação da Abrafin busca evitar esse tipo de episódio?

A gente criou a Abrafin em 2006, na segunda edição do Porto Musical. Era uma época que os festivais independentes apareciam no Brasil todo, em vários territórios, e a ideia era criar uma associação que pudesse uni-los para trocar ferramentas, criar políticas públicas voltadas para o segmento, para pressionar governos, e o governo federal, principalmente. A Abrafin sempre teve uma importância muito grande, especialmente durante um período de 10 anos em que ela foi bastante forte, depois ficou um pouco arrefecida e veio a pandemia, diminuindo mais ainda.

A ideia é que a gente volte a colocar os temas dos festivais independentes na pauta dos estados, dos governos, na pauta das marcas, chamar atenção para importância desses eventos, como talvez o mais importante meio de circulação e divulgação da diversidade da música brasileira, porque os festivais independentes têm esse DNA de mostrar artistas novos, junto com os já consagrados. A gente precisa que esses festivais estejam fortalecidos no Brasil todo para que essa circulação seja possível e as coisas para a música do país voltem a ser mais democráticas. Senão, só aparece quem tem muito dinheiro para pagar impulsionamento nas mídias sociais, nas plataformas de áudio. Os festivais são uma ferramenta fundamental para democratizar cada vez mais e renovar o cenário da música.

Você considera que a Abrafin já teve quais conquistas desde a sua criação?

A nova diretoria ainda é muito nova e ainda estamos entendendo em que pé estão as coisas, no entanto, podemos dizer que uma das principais conquistas foi junto a Funarte, em que a gente já conseguiu um edital para festivais e hoje temos um edital de ações continuadas. Há alguns anos, principalmente no segundo mandato de Lula e primeiro mandato de Dilma, também tivemos conquistas de editais para festivais com a Petrobrás, por exemplo. A gente entende que são conquistas muito importantes para esse fomento de festivais e a gente deve voltar a atuar nessa memória.

Na volta da pandemia, em 2022 e 2023, tivemos um boom de festivais independentes, mas muitos foram cancelados nos anos seguintes. Como você avalia o cenário que estamos vivendo agora?

No pós-pandemia, existia uma demanda enorme reprimida das marcas também, por isso houve uma grande quantidade de dinheiro de patrocínios jogada no mercado, isso favoreceu essa produção de festivais pelo Brasil todo. Mas depois voltou a acontecer uma concentração de recursos na mão de grandes festivais, como o Lollapalooza e o The Town. Esses são gigantes feitos por produtores, mas a gente vê uma quantidade muito grande de outros festivais que foram criados por agências de publicidade e não por pessoas do meio musical.

As agências começaram a criar seus próprios festivais para as marcas que elas trabalham e o dinheiro que ia para os festivais da sociedade civil passou a se concentrar nesses eventos. Esse dinheiro concentrado e o recuo de investimentos acertam em cheio os festivais independentes. Além disso, a gente não tem mais editais de empresas públicas que poderiam ajudar, com exceção da Petrobrás, que abriu um edital ano passado. Há um recuo do investimento, há uma falta de política pública para festivais neste momento, falta principalmente fomento. É importante retomar isso tudo.

No caso de Pernambuco, especificamente, estamos perdendo alguns eventos que eram tradicionais no nosso calendário. Em 2025 não tivemos o Abril Pro Rock, a Mimo não acontece mais anualmente aqui, o Janela Internacional de Cinema e o Cine PE diminuíram. O que você acha que está por trás disso?

Eu acho que falta política pública de fomento aos eventos independentes da sociedade civil. Os governos, tanto estadual, quanto federal, investem em eventos próprios. Eles criam alguns mecanismos, como o Funcultura, para atender a sociedade civil, mas não é o suficiente, a demanda é muito maior. E gasta-se um dinheiro enorme nas datas comemorativas, como no carnaval e no São João. Isso já leva quase todo o orçamento para a Cultura do ano, em vez de haver um equilíbrio entre esses eventos e um fomento a outras iniciativas da sociedade civil.

Falta um pensamento nesse sentido. O mecenato e os fundos de cultura não são uma política pública exatamente, são ferramentas para amenizar a demanda, que é muito maior do que o que é oferecido. Tanto é que a gente vê uma quantidade enorme de projetos inscritos nos editais e um percentual mínimo de aprovados. O que diminuiu um pouco isso foi a Política Nacional Aldir Blanc, que foi um ótimo mecanismo federal executado por estados e municípios, mas ainda falta política pública do ponto de vista municipal e estadual. Políticas públicas de fomento aos eventos de calendário da sociedade civil, que são esses mais antigos que você cita e acontecem em várias áreas.

Que tipo de política pública poderia acontecer?

Poderia ter um calendário ou uma ação em que você olha quais são os eventos que temos para o ano, considerando os festivais que fomentam cada cena anualmente, buscando garantir um patrocínio para esses eventos. Imagina que R$ 300 mil é o que esses eventos precisam para acontecer e, às vezes, isso é só a metade do cachê de um artista que toca em um dia do carnaval. Esse valor contempla um ano de um festival que vai colocar vinte artistas. Quando você pega todo o dinheiro que tem e paga cachês astronômicos para alguns artistas, falta olhar o orçamento de forma global.

O equilíbrio desse orçamento é política pública. Acho que falta olhar pro orçamento do ano e separar uma parte para eventos de ação continuada, para projetos que levem a música para fora do Brasil, para promover intercâmbio de artistas que divulgam nosso estado. Caso contrário, ficam os grandes concorrendo com os pequenos, mas todo mundo precisa. O Porto Musical, por exemplo, não chama atenção de uma grande telefônica ou cervejaria, porque essas marcas estão colocando dinheiro em eventos como o The Town. É preciso que o poder público incentive porque são eventos como o Porto Musical que vai fomentar o novo produtor, o novo agente, o novo artista, conectando novas oportunidades.

Acredito que o governo têm que fazer uma sensibilização ou uma lei que obrigue as prefeituras a colocar a música para tocar, independente se os produtores ou os artistas têm contato lá dentro. A gente já teve um governo no passado, em que a Fundarpe e a Secult iam atrás de todas as prefeituras dizendo que colocariam dinheiro lá, desde que houvesse um bom percentual da grade formado por artistas desvinculados de qualquer interesse político. Acho que hoje podem até estar tentando fazer isso, mas não me parecem estar conseguindo ter vitória.

A Lei de Mecenato promove isenção de impostos para marcas que investem em eventos culturais. Já tivemos ela em Pernambuco e dividia opiniões, alguns produtores acusavam os empresários de investir sempre nos mesmos eventos e não se interessarem pela cultura popular, por exemplo. Depois, o mecenato foi derrubado no estado e o Funcultura passou a ser o principal fomento da cultura pernambucana. Acredita que se a Lei de Mecenato fosse adotada pelo estado novamente faria diferença?

A Lei do Mecenato não vigora para o Governo do Estado, somente para a Prefeitura do Recife. Acho que quanto mais facilidade para os projetos receberem captação de recurso, melhor. O Funcultura sozinho não segura a demanda. O Natura Musical por exemplo, tem o edital nacional e destina uma quantidade de valor especificamente para três estados que têm mecenato. Há muitos anos, a Bahia, o Pará e Minas Gerais têm um Natural Musical só para eles, o restante do país disputa só o edital nacional.

Se Pernambuco tivesse mecenato, ele poderia ter um Natural Musical só para ele, por exemplo. Então, eu sou a favor de um sistema de incentivo à cultura híbrido, que seria o mecenato e o Funcultura. Mas também acho que só o mecenato, sem um trabalho de sensibilização com as marcas, não adianta de nada, porque não temos como bater na porta das telefônicas e das cervejarias se eles não reconhecerem o nosso valor, a concorrência é muito grande.

A alta do dólar nos últimos anos já vinha sendo apontada como uma razão para a redução de atrações internacionais no Recife, por exemplo. Acredita que o tarifaço de Trump e outras políticas internacionais vigentes atualmente podem prejudicar esse segmento?

Não acho que vai impactar o segmento, mas pode atrapalhar a circulação internacional de artistas brasileiros nos Estados Unidos ou em países como o Canadá, cujos voos passam por lá. O que impacta aqui é mais a questão dos valores que estão muito altos para a gente, mas isso já vem antes de Trump, é independente dele.

Se com um artista brasileiro grande que viaja dentro do país a gente vê o ticket médio aqui na faixa de R$ 400 a R$ 600, imagina com um internacional… O ticket médio vai ser quanto? A conta não fecha. O poder aquisitivo daqui (de Pernambuco) não seguraria o que se precisa de bilheteria para fechar essas produções de fora. Acho que vai vir cada vez menos artistas gringos para cá.