Musical 'Maria e Outras Marias' chega ao Teatro do Parque
'Maria e Outras Marias' transpõe para a atualidade dilemas e desafios suscitados pelo papel feminino na sociedade
A vida da mulher contemporânea comum é a alma da reflexão proposta por um musical recifense promovido nesta sexta-feira, no Teatro do Parque, inspirado em um olhar crítico da trajetória da Maria bíblica. Maria e Outras Marias transpõe para a atualidade dilemas e desafios suscitados pelo papel feminino em sociedades marcadas por engrenagens masculinizadas e patriarcais.
A encenação parte de dois poemas com leitura provocativa sobre idealizações da figura de Maria — o de Genserigo Jr. revisa a oração clássica à luz de imposições misóginas, racistas, xenófobas e elitistas (Ave Maria, empregada doméstica, faxineira, babá, mucama) e o de Rangel Alves da Costa ressalta a perpetuidade (Todo santo dia / é dia de Maria) — para combinar música erudita, popular, poesia e teatro, no dia 29, às 20h. O espetáculo é assinado pelo grupo Contracantos com a 25 Produções.
“É uma homenagem e uma provocação à necessidade de atenção às diversas mulheres na sociedade. Mulheres comuns, como nossas esposas, mães, avós, irmãs, que têm o seu papel e isso passa muito despercebido”, observa Matheus Soares, coordenador-geral ao lado de Yasmin Menezes. O musical ambienta a trama em um lixão fictício da periferia recifense para realçar o apagamento típico e mais incidente sobre mulheres das camadas menos abastadas — em situação de vulnerabilidade e marginalização socioeconômica — e metaforiza o renascimento feminino rotineiro através da referência à reciclagem. A cenografia é montada com material de descarte (garrafas, plásticos, latas, pneus) recuperado pelas trabalhadoras da Associação dos Catadores de Pernambuco, entidade destinatária de toda a renda obtida com a venda dos ingressos — a R$ 10 (inteira) e R$ 5 (meia), disponíveis no site e aplicativo do Guichê Web.
O espetáculo estabelece a ponte entre o percurso da Maria bíblica e as mulheres reais da atualidade em três atos, divididos entre o chamado à maternidade (anunciação), a romaria pela missão sagrada (devoção) e a vida ordinária das mulheres comuns em uma comunidade de morro — alusão em forma de tributo também à verve religiosa e sacra do Recife e do Morro da Conceição, palco de festas, arte popular e rituais dedicados à santa homônima.
A Maria cênica é uma catadora do lixão surpreendida pela visita de um inusitado “anjo moderno” — de perfil andrógino, moletom e fone de ouvido — com o anúncio da maternidade. “A gente queria fazer essa analogia com uma catadora, que tem zero visibilidade. Ela questiona: ‘Ninguém me perguntou isso, eu tenho mãe, filho para cuidar’, e o anjo diz que ela não estaria sozinha”, observa Matheus.
A ponderação sobre o silenciamento da voz feminina faz alusão ao arco bíblico da Maria por, segundo as escrituras sagradas, alçar uma mulher comum à condição de mãe do filho de Deus à revelia de escolhas e decisões. “Maria tem sua história de fé e coragem e enfrentou, no tempo dela, diversos desafios, de aparecer grávida sem estar casada, de ser mãe do filho de Deus que iria mudar o mundo. Foi muita responsabilidade, e ela sequer foi perguntada se queria ou não, caiu pra ela”, ele pontua.
A peça recorre ao teatro de sombras (com direito a menção aos reis magos) e a composições com referências a ‘Marias’ para transitar da referência religiosa ao paralelo com histórias de mulheres comuns do dia a dia — o repertório passa por quatro clássicos da “Ave Maria” (de Franz Liszt, Biebl, Kevin Memley), pela “Ave Maria sertaneja” com Luiz Gonzaga, pela “Ave Maria no Morro” (de Herivelto Martins), por “Maria, Maria” (Milton Nascimento), “Sancta Maria” e “Lata d’água”. “Com ‘lata d’água na cabeça, é contada a história de uma Maria que trabalha no morro levando água na cabeça para lavar roupa e termina com ‘Maria, Maria’, de Milton, para representar mulheres sinônimos de força, garra, coragem, luta”, acrescenta Matheus.
A protagonista é interpretada pela atriz Pollyana Monteiro, também diretora cênica do espetáculo, e construída sob perspectiva humanista de resiliência diante de adversidades recorrentes à mulher. “O espetáculo se constrói a partir do desejo de evidenciar a poesia que pode existir no meio da dureza. Queremos mostrar a força que há dentro de uma pessoa ao cuidar de outra e como isto pode transformar vidas. Além de trazer a coletividade como caminho para construção de um mundo menos individualista e mais empático. Para tudo isso, usamos como metáfora o nascimento de uma flor”, diz a intérprete.
A atriz sublinha o perfil resistente da personagem como contraponto a situações de dificuldade contraídas por circunstâncias e estruturas sociais e históricas — traço extensível da Maria bíblica às Marias atuais. “Aos poucos, ela descobre uma força que não sabia que tinha. Isso poderia ser a história de qualquer mulher que aceitou cuidar de alguém. É nisso que todas essas Marias se aproximam. Todas são mulheres que, mesmo com medo, seguiram em frente porque a vida pedia isso delas”, arremata Pollyana, uma mulher cuja origem indígena retém o foco especial da reflexão suscitada pelo musical, ao lado de negras, nordestinas, periféricas e trabalhadoras — de ontem e hoje.
O espetáculo, incentivado pelo SIC, da Prefeitura do Recife, tem figurino assinado por Marcondes Lima, com direção de arte de Paulo Michelotto, arranjos musicais de Lucia Helena Cysneiros e direção musical e regência do fundador do Contracantos, Flávio Medeiros, embrião artístico para a realização do musical — a epifania dele para a montagem remonta a 1996, quando conheceu as estrofes exuberantes do poema de Genserico Jr. sobre a “Ave Maria”. O projeto hibernou 30 anos para germinar e provar a atemporalidade da reflexão necessária sobre o papel e os dilemas enfrentados pela mulher — de ontem e de hoje, de todas as Marias.